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http://underpop.online.fr 1996-10-21  

Sokal, parodista de si mesmo

Sokal, parodista de si mesmo

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 21 outubro 1996


De cada nova série de vexames, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal

Tendo enviado a uma revista sociológica de esquerda um artigo de puro ''nonsense'' em jargão academês, para ver se o publicavam, o físico Alan Sokal acrescentou ao seu currículo o título de humorista. A ''Social Text'', caindo no engodo, ainda se melou toda ao procurar se justificar.
Mais que para simples divertimento, a proeza serviu para mostrar a inépcia intelectual da esquerda acadêmica. Roberto Campos, em artigo publicado na Folha (22/9), sublinhou o valor do experimento, que evidenciara a nudez real de uma das comunidades mais pretensiosas deste mundo. É surpreendente que agora apareça Alan Sokal dizendo (6/10) que Campos o interpretou pelos olhos ''de um cego preconceito''.
''A paródia'', proclama Sokal, ''não teve a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la pela crítica de seus excessos. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _daqueles apanhados com as calças na mão_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.'' O grosso da esquerda ''começa a reconhecer seus erros, a se renovar intelectualmente'', e Campos é que distorceu tudo ao enxergar no caso um vexame global.
Mas essa argumentação é um tanto bizarra. Um autor que desejasse edificar o pecador pela crítica de seus excessos, sem torná-lo alvo de riso, faria dele objeto de exortação, de análise ou coisa assim. Jamais de paródia, um gênero que consiste precisamente em expô-lo ao ridículo pela imitação de seus trejeitos. Quanto a saber se o objeto da paródia sairá enfraquecido ou fortalecido, nenhum comediógrafo experiente buscaria controlar a esse ponto um efeito que depende inteiramente da livre reação moral da vítima. Ela pode aproveitar o estímulo para se regenerar ou então torná-lo ocasião de se expor a um ridículo maior ainda, exatamente como fez o diretor de ''Social Text'', arrastando de cambulhada, como bem viu Campos, muitas revistas congêneres. Se o ridículo produzido por Sokal foi impremeditado, isso só mostra que o humorista principiante está sujeito ao risco de se tornar personagem, no papel daquele marinheiro que, na privada, apertava o botão da descarga no preciso instante em que o navio era atingido por um torpedo.
Que alguns esquerdistas aplaudam ''ex post facto'' a paródia não prova que estejam livres dos vícios que ela denuncia. Prova apenas que não se solidarizam com colegas de militância apanhados em flagrante delito de vexame. Entregar os anéis para salvar os dedos não é nenhuma renovação intelectual, é apenas uma velha esperteza.
A esquerda, com efeito, tem vivido de denunciar seus próprios erros desde o dia em que, na Revolução Francesa, reconheceu a utilidade de guilhotinar um guilhotinador _um ato que elevou às nuvens o prestígio do movimento e lhe deu cacife para continuar guilhotinando a quem bem entendesse. Desde então, cada nova geração do esquerdismo nasce da orgulhosa proclamação do descrédito da anterior. O próprio marxismo emerge de uma crítica arrasadora dos erros da esquerda. De Robespierre a Alan Sokal, as moscas mudam, mas _como direi?_ a caravana passa: de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal e imbuída de seu direito a infindáveis créditos de confiança, tanto mais renováveis quanto mais o débito entra sempre na conta da administração anterior. Sokal é apenas mais um oficiante do antigo ritual cíclico em que a esquerda se realimenta, dialeticamente, da sua própria negação.
Para cúmulo, Sokal procura minimizar o alcance de sua própria crítica, afirmando que só atacou uma minoria. Mas como explicar que a crítica a uma fração minoritária tenha provocado tamanha celeuma senão por essa fração ser representativa do todo? Sokal admite que seu artigo citava um rol de bobagens ditas ''por proeminentes intelectuais'' _e ninguém é proeminente por receber somente o aplauso da minoria. Derrida, Foucault, Lyotard, Lacan, Deleuze não são objetos de culto de um miúdo igrejório provinciano: são ídolos da ''intelligentsia'' mundial. Ridicularizados, comprometem necessariamente a falsa imagem de respeitabilidade intelectual da esquerda como um todo. Não há escapatória.
Sokal poderia ter preservado ao menos sua própria respeitabilidade, se não mostrasse ter a tradicional propensão da esquerda a julgar seus atos apenas pelas intenções alegadas, pulando fora da responsabilidade pelos efeitos reais, por mais previsíveis que sejam. Mas ele preferiu superar, como humorista involuntário, seus dons de parodista. Pois o ar de inocência com que um autor de paródia declara não ter tido intenção de ridículo faria dele um autêntico ''pince-sans-rire'', se não soubéssemos que ele acredita no que diz, e que, no caso, acreditar no que diz é admitir que não sabe o que faz.
Olavo de Carvalho, 49, jornalista, é autor de ''O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil'' e de ''O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras''.

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