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http://underpop.online.fr 1996-10-06  

As razões do relativismo civilizado

As razões do relativismo civilizado

Jesus de Paula Assis

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996

"Insisto em que todos os escritores que pretendam informar seus leitores fiquem longe da filosofia ou que, pelo menos, não sejam intimidados ou influenciados por causadores de confusão como Derrida..." Paul Feyerabend "Killing Time", cap. 15.

Alan Sokal é um nome em alta nas ciências humanas. Em abril, pregou uma surpreendente peça na revista norte-americana ''Social Text'' na qual, supostamente, pôs a nu a fragilidade do pensamento relativista. A polêmica foi trazida aos leitores da Folha pelo Mais! de 15/09/96. Deixando de lado o pitoresco da história toda, a farsa de Sokal mostra que existe, de fato, ao lado do evidente embuste de uma certa autoproclamada esquerda pós-moderna, uma profunda incompreensão quanto ao que sejam os estudos em filosofia da ciência e qual seu papel para o entendimento da atividade científica.

Primeiro, os fatos. Alan Sokal é professor de física na New York University e remeteu para publicação na revista acadêmica ''Social Text'' um artigo com o incrível título "Transgredindo Fronteiras, Rumo a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica". Sua pretensa argumentação era que as recentes pesquisas em gravidade quântica _um ramo nascente em física teórica_ já teriam profunda influência política libertadora sobre a cultura, pondo definitivamente de lado o que hoje se aceita como método científico (identificado, portanto, com o pensamento conservador). O artigo contém exatas 109 notas de rodapé, nas quais aparecem de Derrida a Paulo Freire. Nenhuma citação foi inventada; todas estão exatamente como figuram nos originais.

Os editores de ''Social Text'' aceitaram o texto para publicação sem reservas. Dias depois, Sokal publicou na revista ''Lingua Franca'' outro artigo, no qual esclarecia que "Transgredindo.." era uma piada.

De fato, apesar das citações corretas, "Transgredindo..." não contém qualquer argumento bem encadeado. São citações esparsas, misturando incorreções científicas e históricas (estas sim, propositadamente inventadas) com a linguagem fátua que caracteriza uma fração do pensamento epistemológico contemporâneo.

Até aí, boa ironia, que não faz mal a ninguém, salvo às incautas vítimas. Mas elas que se danem. O problema começa quando se procura em Sokal informação sobre quem é realmente o objeto da ironia. Aí, a coisa muda de figura. No mesmo saco, aparecem Derrida, Lyotard e Latour, mas também filósofos como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, articuladores, estes sim, de um pensamento relativista "civilizado", diferente do pensamento (se é que a palavra cabe) relativista ensandecido ou propositadamente obscuro dos outros autores.

Sokal _no artigo publicado em ''Lingua Franca''_ argumenta que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids ou a projetar estratégias para evitar o aquecimento global". E dai? Essa constatação trivial invalidaria esses estudos? Não mais do que afirmar, também trivialmente, que estudos em sismologia não vão ajudar a achar a cura para a Aids. Mas Sokal pensa de forma diferente: está sugerindo que nenhum estudo externo sobre a ciência tem sentido.

Para chegar a isso, usa uma estratégia falha. Logo no início de "Transgredindo...", cita Thomas Kuhn e Paul Feyerabend como autores que "duvidaram da credibilidade da metafísica newtoniano-cartesiana", o que é, no mínimo, grosseiro. Daí, conclui que a idéia de que exista um mundo exterior a nossos pensamentos já não pode ser sustentada; liga tudo isso a Derrida, Lyotard, Ross, Latour e companhia, e conclui afirmando que toda essa tradição intelectual nos força a tomar uma nova direção quanto ao que devemos considerar "ciência". "Social Text" engoliu tudo (com gosto, frise-se) e publicou o artigo.

"Transgredindo..." afirma portanto que existe uma tradição coerente que liga Kuhn a Derrida e isso, simplesmente, não é verdade. O fato de os editores de ''Social Text'' ratificarem a existência dessa linha de argumentação (tanto que publicaram o texto) não ajuda, não a torna real.

Uma coisa é dizer que a ciência natural assenta em bases que têm condicionantes históricos e sociais (relativismo civilizado); outra, é dizer que esses condicionantes são totalmente responsáveis pelo conteúdo das asserções científicas (relativismo enlouquecido). Dizer que a ciência acumula resultados, mas que os problemas sobre os quais se debruça não são sempre os mesmos é civilizado; dizer que cada campo de estudo é fechado em si próprio e que não existe qualquer termo de comparação entre eles, devendo todos, portanto, ser julgados em pé de igualdade, é bárbaro. Existe quem defenda essa barbárie, quem também veja machismo na matemática, em afirmações como 1+1=2. Mas frise-se que bárbaros existem em qualquer meio e são uma praga da qual a física também não está isenta.

Na verdade, a peça que Sokal chama de "modesto experimento" é completamente enviesada. ''Social Text'' é uma obscura revista norte-americana, um gueto da pós-modernidade que professa o que se chama acima de relativismo enlouquecido. Do fato de se dizerem relativistas (sem mais adjetivos), não segue que o sejam. Não mais do que a afirmação de alguns políticos de que são marxistas impute automaticamente toda bobagem que digam a Marx. Se Sokal tivesse remetido "Transgredindo..." para uma revista científica de primeira linha (como ''Synthese'' ou ''Social Studies of Science'', só para citar dois exemplos), revistas que aceitam e publicam artigos de tendência argumentativa relativista (civilizada), é quase certo que o destino de suas páginas seria o lixo. Mas isso enfraqueceria seu "modesto experimento". Mas então, que experimento é esse que escolhe um adversário fraquíssimo e obscuro, vence-o e afirma que a vitória implica a derrocada de tudo o que (mesmo remota e enviesadamente) é defendido pelo oponente? Procurando um pouco, não seria difícil para Sokal achar uma pequena revista de física, a qual publicaria um artigo seu eivado de bobagens, unicamente por ser ele professor de uma universidade prestigiosa. E o que isso provaria? Que a física contemporânea deveria ser desacreditada? É evidente que não. O "modesto experimento", assim, deve ser colocado exatamente como é: modesto, modestíssimo. Provou que uma revista obscura e sem importância é também intelectualmente fraca. Parabéns.

Apesar disso, da evidente fragilidade de toda argumentação _isto é, do artigo original, mais o artigo que entrega a farsa_, não faltam entusiastas. Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física, saúda Sokal, dizendo que ele teria desnudado uma perniciosa tendência que mina a ciência contemporânea ("New York Review of Books", 8/8/96 e 3/10/96). Ou seja, desbancado o relativismo (o civilizado sai pelo ralo junto com o resto, claro), quem pode, portanto, com autoridade, falar sobre ciência? Apenas cientistas naturais ou filósofos que concordem inteiramente com eles. É o que Sokal tem em mente quando escreve que "teorizar acerca da 'construção social da realidade' não vai nos ajudar a encontrar um tratamento efetivo para a Aids...". Existe implicada na afirmação uma grosseira confusão entre ciência e estudo sobre ciência. Uma ciência natural (a física ou a biologia) estuda o mundo natural, procura determinar regras que tornem esse mundo compreensível e que tenham certo caráter preditivo. A sociologia da ciência ou a filosofia da ciência não tomam como objeto de estudo o mundo natural, mas a própria atividade científica. Portanto não há nada de surpreendente em que estudos em filosofia ou em sociologia da ciência não tragam a cura para a Aids. O que surpreende é que haja quem se entusiasme com uma conclusão tão pueril.

No fim de contas, o "modesto experimento" acaba sendo usado para invalidar toda uma importante tradição de pesquisa. Se se quer compreender a ciência contemporânea, é preciso levar em conta que o significado da expressão "atividade científica" varia com o tempo. Conforme a época, diferentes são os problemas estudados, diferentes são os métodos usados para pesquisá-los e diferentes são os valores atribuídos a cada enfoque. Se não se levar isso em consideração, corre-se o risco de julgar que o mundo sempre foi visto com os mesmo olhos e que só o presente fornece explicações aceitáveis para os fenômenos naturais. Pacientes estudos históricos foram mostrando essas variações de matiz entre problemas e métodos usados em diferentes épocas e tradições. Esses estudos acumulados pedem alguma explicação: como definir, então, a atividade científica?

Se nem sempre os problemas e os métodos foram os mesmos, deve-se concluir que a imagem em que a ciência natural (mais especificamente, a física) aparece como um contínuo que acumula teorias é falsa e torna-se tarefa importante encontrar algum modelo alternativo para compreender seu desenvolvimento. No extremo oposto, não se pode considerar cada época (ou cada teoria) um todo fechado em si mesmo, incomunicável, pois isso iria de encontro ao fato mais que evidente de que existe uma continuidade histórica de pesquisa científica. É assim razoável supor que o caminho está em encontrar um modelo para o desenvolvimento científico que leve em conta tanto o que existe de comum como o que existe de incomensurável entre diferentes épocas e disciplinas científicas, que veja as continuidades, mas que não deixe de consignar os pontos irredutíveis e intraduzíveis presentes em qualquer transição entre teorias científicas. E esse passo rumo à civilidade _entendida aqui como o esforço honesto para compreender melhor a cultura_ é descartado simplesmente porque alguns grupos de autores são propositadamente obscuros ou delirantes e porque um subgrupo destes caiu em uma bem-tramada emboscada.

Mas devemos ser equilibrados: não apoiar a evidente fatuidade de ''Social Text'' e dos autores que a orbitam, nem se entusiasmar com o modesto experimento de Sokal. E esse ponto de equilíbrio se nutre das boas lições do relativismo. Mas apenas do civilizado.

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A razão não é propriedade privada

A razão não é propriedade privada

Alan Sokal

Folha de São Paulo, 6 outubro 1996

A Folha de 22/9 trouxe artigo de Roberto Campos sobre uma ''brincadeira'' de minha autoria no qual o autor expõe _como é seu direito_ sua análise do caso e de seu significado político. No entanto, em seu zelo de interpretar a controvérsia decorrente numa camisa-de-força de esquerda/direita, Campos distorceu os meus motivos políticos _claramente declarados, aliás_, recrutando-me contra a minha vontade para sua cruzada ideológica direitista.

A história é conhecida. Submeti à ''Social Text'', revista norte-americana de crítica cultural identificada com a ''esquerda pós-modernista'', um artigo paródico no qual afirmava que a ''ciência pós-moderna'' aboliria o conceito de realidade objetiva e, desse modo, sustentaria intelectualmente o ''projeto político progressista''.

O artigo foi preenchido de citações perfeitamente genuínas de proeminentes intelectuais norte-americanos e franceses _Stanley Aronowitz, Sandra Harding, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e dúzias de outros_ escrevendo bobagens sobre a matemática e a física, tudo acompanhado de blandícias rasgadas.

Os editores da ''Social Text'' aceitaram e publicaram o artigo, sem perceber que se tratava de uma paródia. Logo depois, revelei a ''brincadeira'' em outra revista, ''Lingua Franca'', em que expliquei os meus motivos intelectuais e políticos.

A ''confissão'' desencadeou uma torrente de reportagens na mídia do mundo anglo-saxão e de outros países. Os temas subjacentes têm se tornado objeto de inúmeros debates nos círculos universitários norte-americanos.

Segundo Roberto Campos, o caso demonstraria a falência intelectual da esquerda, reduzida à ''parolagem e às pretensões intelectuais''. Mas será que é mesmo assim? Embora o pobre leitor do artigo de Campos não o suspeitasse jamais, eu pertenço à esquerda _entendida amplamente como corrente política que condena as injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e que procura eliminá-las, ou pelo menos minimizá-las.

Sem dúvida, a esquerda mundial está passando por uma crise intelectual e estratégica, provocada não tanto pelo colapso do comunismo _sistema opressivo que a esquerda democrática sempre condenou_, mas pela crescente globalização do capital e a consequente dificuldade de sujeitá-lo a controle democrático.

Foi nesse contexto que escrevi a paródia: não com a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la por meio da crítica de seus excessos.

Pois excessos têm sido cometidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde a esquerda sempre foi marginal e marginalizada, excluída da responsabilidade cotidiana de elaborar um programa político, de defendê-lo e, eventualmente, de implementá-lo.

Nessa situação de impotência, exacerbada nos anos 80 e 90, a esquerda norte-americana se fragmentou. Reduzimo-nos a uma coleção de lutas setoriais _negros, latinos, mulheres, gays, operários_, todas valorosas, mas sem ligação estratégica entre si.

Pior, uma parte da esquerda intelectual fechou-se no ambiente universitário, em que as lutas intestinas da profissão substituíram a verdadeira política: na frase memorável do sociólogo Todd Gitlin, ''marcharam sobre a Faculdade de Letras enquanto a direita tomava a Casa Branca''.

Foi num meio acadêmico cada vez mais voltado para si próprio que, com base em idéias originalmente frutíferas e libertadoras _feminismo e multiculturalismo, por exemplo_, se construiu um novo escolasticismo, representado especialmente pela corrente pós-moderna. Esta, porém, nunca constituiu a totalidade, nem mesmo a maioria, da ''esquerda acadêmica''.

Para cada artigo sobre a transgressividade sexual de Madonna, publicaram-se cinco analisando rigorosamente a desigualdade salarial entre mulheres e homens. Para cada livro escrito em incompreensível jargão desconstrucionista, editaram-se dez de fascinante história social.

Por esse motivo, a reação à minha ''brincadeira'' nos meios esquerdistas norte-americanos foi bem o contrário do que Roberto Campos _cegado por seus preconceitos e imaginando ''patrulhadores'' do politicamente correto atrás de cada esquina_ faz crer. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _aqueles apanhados com as calças nas mãos_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.

Assim, por exemplo, escrevendo em ''The Nation'', a cronista Katha Pollitt opinou que ''essa demonstração do alto coeficiente de vazio nos estudos culturais _o modo como combina a submissão disfarçada à autoridade com o mais alucinado radicalismo de fachada_ é mais do que oportuna''.

A historiadora Ruth Rosen considerou que ''a paródia de Sokal desvendou a hipocrisia praticada por esses pretensos revolucionários culturais. Afirmam querer democratizar o pensamento, mas escrevem propositalmente num jargão exclusivo para uma elite de iniciados. Pretendem que sua obra seria transformativa e subversiva, mas permanecem obsessivamente focados na construção social e linguística da percepção humana, não na dura realidade da vida das pessoas''.

A revista esquerdista ''In These Times'' editorializou que ''a relação entre esses esquerdistas acadêmicos e a sociedade norte-americana se assemelha cada vez mais àquela dos monges clausurados falando e escrevendo para si mesmos em latim. Ao contrário da vociferação conservadora contra a subversão marxista das universidades, o trabalho desses acadêmicos nada ameaça senão a possibilidade de renascimento de uma esquerda intelectualmente vigorosa''.

Todos esses comentadores reconheceram a crise intelectual e estratégica da esquerda e insistiram na necessidade de enfrentá-la com um trabalho sério, baseado nos fatos, na ciência e na razão. Pois a razão e a honestidade intelectual não são propriedade privada nem da esquerda nem da direita.

Num passado não tão distante, as ditaduras militares, desde a Guatemala até a Terra do Fogo, torturavam e assassinavam em nome da ''liberdade'' (a liberdade do lucro, bem entendido). Hoje em dia, o Fundo Monetário Internacional organiza a redistribuição da riqueza dos pobres aos ricos, destruindo as economias do Terceiro Mundo em nome do ''estabilizá-las''. Os sacerdotes do Deus Mercado inventam belos encantamentos para disfarçar seus efeitos sobre os seres humanos.

Não foi por acaso que George Orwell, quem, mais do qualquer outro nesse século, desmascarou e condenou a desonestidade política, viesse de onde viesse, foi sempre um homem da esquerda.

A esquerda começa a reconhecer seus erros _que foram tantos_ e a renovar-se intelectualmente. A direita terá a mesma coragem?

Alan Sokal é professor de física da Universidade de Nova York (EUA). Foi professor de matemática na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (verões de 1986-88). Tem colaborações científicas em diversos países, incluindo o Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais).

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