1996
De cada nova série de vexames, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal
Tendo enviado a uma revista sociológica de esquerda um artigo de puro ''nonsense'' em jargão academês, para ver se o publicavam, o físico Alan Sokal acrescentou ao seu currículo o título de humorista. A ''Social Text'', caindo no engodo, ainda se melou toda ao procurar se justificar. Mais que para simples divertimento, a proeza serviu para mostrar a inépcia intelectual da esquerda acadêmica. Roberto Campos, em artigo publicado na Folha (22/9), sublinhou o valor do experimento, que evidenciara a nudez real de uma das comunidades mais pretensiosas deste mundo. É surpreendente que agora apareça Alan Sokal dizendo (6/10) que Campos o interpretou pelos olhos ''de um cego preconceito''. ''A paródia'', proclama Sokal, ''não teve a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la pela crítica de seus excessos. Com exceção daqueles mais diretamente afetados _daqueles apanhados com as calças na mão_, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.'' O grosso da esquerda ''começa a reconhecer seus erros, a se renovar intelectualmente'', e Campos é que distorceu tudo ao enxergar no caso um vexame global. Mas essa argumentação é um tanto bizarra. Um autor que desejasse edificar o pecador pela crítica de seus excessos, sem torná-lo alvo de riso, faria dele objeto de exortação, de análise ou coisa assim. Jamais de paródia, um gênero que consiste precisamente em expô-lo ao ridículo pela imitação de seus trejeitos. Quanto a saber se o objeto da paródia sairá enfraquecido ou fortalecido, nenhum comediógrafo experiente buscaria controlar a esse ponto um efeito que depende inteiramente da livre reação moral da vítima. Ela pode aproveitar o estímulo para se regenerar ou então torná-lo ocasião de se expor a um ridículo maior ainda, exatamente como fez o diretor de ''Social Text'', arrastando de cambulhada, como bem viu Campos, muitas revistas congêneres. Se o ridículo produzido por Sokal foi impremeditado, isso só mostra que o humorista principiante está sujeito ao risco de se tornar personagem, no papel daquele marinheiro que, na privada, apertava o botão da descarga no preciso instante em que o navio era atingido por um torpedo. Que alguns esquerdistas aplaudam ''ex post facto'' a paródia não prova que estejam livres dos vícios que ela denuncia. Prova apenas que não se solidarizam com colegas de militância apanhados em flagrante delito de vexame. Entregar os anéis para salvar os dedos não é nenhuma renovação intelectual, é apenas uma velha esperteza. A esquerda, com efeito, tem vivido de denunciar seus próprios erros desde o dia em que, na Revolução Francesa, reconheceu a utilidade de guilhotinar um guilhotinador _um ato que elevou às nuvens o prestígio do movimento e lhe deu cacife para continuar guilhotinando a quem bem entendesse. Desde então, cada nova geração do esquerdismo nasce da orgulhosa proclamação do descrédito da anterior. O próprio marxismo emerge de uma crítica arrasadora dos erros da esquerda. De Robespierre a Alan Sokal, as moscas mudam, mas _como direi?_ a caravana passa: de cada nova série de vexames, horrores e fracassos, a esquerda emerge revigorada pelo milagre da ablução verbal e imbuída de seu direito a infindáveis créditos de confiança, tanto mais renováveis quanto mais o débito entra sempre na conta da administração anterior. Sokal é apenas mais um oficiante do antigo ritual cíclico em que a esquerda se realimenta, dialeticamente, da sua própria negação. Para cúmulo, Sokal procura minimizar o alcance de sua própria crítica, afirmando que só atacou uma minoria. Mas como explicar que a crítica a uma fração minoritária tenha provocado tamanha celeuma senão por essa fração ser representativa do todo? Sokal admite que seu artigo citava um rol de bobagens ditas ''por proeminentes intelectuais'' _e ninguém é proeminente por receber somente o aplauso da minoria. Derrida, Foucault, Lyotard, Lacan, Deleuze não são objetos de culto de um miúdo igrejório provinciano: são ídolos da ''intelligentsia'' mundial. Ridicularizados, comprometem necessariamente a falsa imagem de respeitabilidade intelectual da esquerda como um todo. Não há escapatória. Sokal poderia ter preservado ao menos sua própria respeitabilidade, se não mostrasse ter a tradicional propensão da esquerda a julgar seus atos apenas pelas intenções alegadas, pulando fora da responsabilidade pelos efeitos reais, por mais previsíveis que sejam. Mas ele preferiu superar, como humorista involuntário, seus dons de parodista. Pois o ar de inocência com que um autor de paródia declara não ter tido intenção de ridículo faria dele um autêntico ''pince-sans-rire'', se não soubéssemos que ele acredita no que diz, e que, no caso, acreditar no que diz é admitir que não sabe o que faz. Olavo de Carvalho, 49, jornalista, é autor de ''O Jardim das Aflições: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil'' e de ''O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras''.
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10/21/1996 12:00:00 AM,
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"O imbecil coletivo... é uma coletividade de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior, que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras".Olavo de Carvalho Uma divertida, mas muito oportuna tempestade, ainda agitando os subúrbios da vida acadêmica americana. Um físico, dr. Alan Sokal, professor da New York University, publicou na edição da primavera/verão da "Social Text", uma revista esquerdista de crítica cultural, dedicada sobretudo ao "pós-modernismo", um enroladíssimo ensaio intitulado "Atravessando as Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica"! Logo depois, Sokal publicou em outra revista, "Língua Franca", um artigo sob o título de "Um Físico faz Experiências com Estudos Culturais". Neste, ele explica que o texto mandado para "Social Text" era uma paródia às custas dos praticantes dos "estudos da ciência"; não mais que uma piada repleta de frases sem sentido, para dar a impressão de que estava questionando a validade da mensuração da "realidade" física... O que doeu para burro (não é jogo de palavras...) é que a revista "Social Text", que hospedara essa brincadeira, havia conquistado certa reputação de seriedade na linha culturalista de esquerda. Tornara-se uma espécie de último refúgio intelectual dos resíduos de um radicalismo acadêmico que ainda floresce em áreas menos iluminadas das chamadas "ciências sociais". Há muito tempo, os cientistas das disciplinas "duras" vem sentindo crescente desgosto com o facilitário, a parolagem e as pretensões intelectuais dessa turma "engajada". Ninguém se esquece do que aconteceu nos tempos áureos do socialismo de Stálin. Nessa época, a teoria da relatividade era ciência "burguesa" e "judaica"; a cibernética era banida por motivos parecidos (o que atrasou enormemente a tecnologia soviética) e a genética mendeliana dava Gulag ou pior (porque contrariava o suposto socialista da "hereditariedade dos traços adquiridos"). Essas histórias, é verdade, são antigas, mas o vício do patrulhamento, pela submissão da idéia à ideologia, parece gostoso demais às esquerdas, em que conseguem alguma parcela de poder. Aqui nas terras de Macunaíma, muita gente foi patrulhada e perseguida, não raro da maneira mais calhorda _tudo, é claro, em nome da "boa causa". Há patrulhadores contumazes: Antonio Callado, por exemplo, na literatura, e Emir Sader, nas ciências sociais. O primeiro buscou vetar a publicação no Jornal do Brasil de artigos de Olavo de Carvalho, um filósofo de grande erudição, e o segundo investiu contra José Guilherme Merquior, que foi indubitavelmente o sociólogo de maior densidade cultural da jovem geração brasileira e o que mais se projetou internacionalmente. A brincadeira de Sokal não mereceria talvez mais que uma gargalhada, se os colaboradores do "Social Text" não tivessem perdido a esportiva e falado em "quebra de ética" e outras coisas feias, armando uma verdadeira guerra contra os chamados "conservadores na ciência". Na verdade, eles confessam que haviam tomado o artigo de Sokal como uma tentativa séria de um físico para encontrar na "filosofia pós-moderna" algum apoio para os desenvolvimentos na sua ciência. E algumas afirmações do editor da revista, professor Stanley Fish, da Duke University, acabaram soando quase tão engraçadas quanto as de Sokal: "Os sociólogos da ciência, diz ele, não estão tentando fazer ciência, mas sim encontrar uma rica e poderosa explicação do que significa fazê-lo"... (sic) Essa tentativa de auto-justificação espicaçou irritações acumuladas e atiçou um fogo de morro-arriba nos círculos acadêmicos pelo mundo afora. Não é de hoje, naturalmente, que pensadores sérios reclamam contra o facilitário com que praticantes das chamadas "ciências sociais" _e da filosofia_ abusam dos critérios de racionalidade e da semântica, às vezes em defesa de interesses ideológicos imediatistas. O grande lógico-matemático Carnap, por exemplo, desancou asserções sem sentido de filósofos então na moda. Tudo isso, porém, faz parte do jogo, e não despertaria atenção se não fosse a crescente falta de desconfiômetro intelectual dos "radicais chiques", "engajados", negando validade aos esforços de conhecimento objetivo das ciências e pregando descaradamente como "ciência" seus próprios preconceitos políticos e ideológicos. A discussão estourou feia por outros campos. Por exemplo, um jornalista trouxe à baila que, em alguns casos, estava sendo ensinado que Cleópatra e Sócrates eram ambos negros, que a filosofia e a ciência gregas haviam sido roubadas da África e que Aristóteles roubara a sua filosofia da biblioteca de Alexandria. Tolices como essas mal escondem um viés paternalista insultuoso, que só desserve à causa da justiça à raça negra. Não sem razão, o super-radical líder negro americano Farrakhan, que fez a recente notável marcha sobre Washington e que prega, inclusive, uma estrita separação em relação aos brancos, rejeita esse bom-mocismo e reclama dos seus correligionários uma "auto-afirmação séria". Para nós, acostumados a um grau de descaramento muito mais grosso por parte dos nossos radicais e corporativos, as diluídas repercussões do caso que nos estão chegando podem parecer diversão de Primeiro Mundo. Mas, por trás de tudo isso, há perguntas válidas. Será tudo tão relativo que nada de objetivo se possa afirmar sobre o mundo real? Está o cientista obrigado pelas regras lógicas e éticas da consistência, ou o "engajamento" será o mais importante de tudo? Será toda a "verdade" sempre "política" e "ideológica", ou os princípios da Razão podem levar-nos a um conhecimento cada vez mais amplo, acessível a todos e por todos aferível? Não há respostas absolutas para essas indagações. Mas todos nós temos de manter alguma relação com aquilo que podemos chamar de "mundo real". Mesmo um engajado "sociólogo da cultura", por mais enroscado que esteja na "desconstrução pós-moderna", ao apertar o botão da luz espera que a lâmpada acenda, e, ao virar a chave do carro, espera sem sombra de dúvida que as "relativas" leis da física e da química e a matemática em que são formuladas não pararão de funcionar naquele exato momento. Por outro lado, o esforço de "desconstrução", como todos os esforços críticos, pode ser útil para balizar nosso pensamento e mostrar alguns dos nossos limites. Que não são muita novidade, aliás. Há 25 séculos, os gregos quebravam a cabeça com paradoxos não diferentes daqueles sobre os quais se debruçariam os matemáticos e lógicos Whitehead e Russell e, mais recentemente, Gõdel. Os economistas, esses então, vivem com permanente enxaqueca, porque lidam com matérias que são, ao mesmo tempo, próprias da matemática e da física, da história e da cultura. Ou seja, de um lado há o risco do buraco negro de um excessivo grau de abstração; de outro, o lameiro do facilitário com que os malandros se valem das "ciências sociais". Com pequenas perversidades de um lado e de outro. Por exemplo, Paul Krugman, o economista (é claro...), recentemente contou a anedota do professor de economia hindu que assim tentava explicar aos alunos a reencarnação: "Se vocês forem sérios, aplicados, fizerem bem os seus deveres, na próxima encarnação voltarão como físicos. Se forem malandros e relaxados, voltarão como sociólogos"... Não pretendo tirar conclusões, porque prefiro não apanhar nem de um lado nem de outro. Já sofri a minha quota de patrulhamento. Mas, que seria bastante útil um pouco mais de rigor no discurso brasileiro, seria. Só haveria ganhos se começássemos a praticar a semântica do sujeito-verbo-predicado, em vez do nosso tropical desrespeito pelas palavras e pelo fato de que, por trás delas, tem de haver certo sentido nas coisas... Roberto Campos, 79, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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9/22/1996 12:00:00 AM,
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