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http://underpop.online.fr 1998-04-19  

Uma crítica sem fundamento

Uma crítica sem fundamento

Alan Sokal e Jean Bricmont

especial para o "Le Monde" [Disponível também no francês original.]

Folha de São Paulo, 19 abril 1998

Não é necessário responder às críticas de Jacques Derrida sobre nosso livro _"Imposturas Intelectuais"_, pois ele de modo algum as formula em seu artigo. Ele se contenta em nos lançar ao rosto expressões pejorativas _ "oportunidade de uma reflexão séria desperdiçada", "não são sérios", "cavaleiros mal-treinados", "censores"_, sem apontar um único erro em nosso livro ou criticar uma única de nossas análises. Aliás, desde a publicação do livro, assistimos à repetição do mesmo cenário: nossos detratores não formulam nenhuma crítica concreta; eles admitem implicitamente que aquilo que dizemos é verdadeiro, mas explicam que, por várias razões, não fica bem dizê-lo.

Uma vez que Jacques Derrida consagra a maior parte de seu artigo a defender-se contra um ataque que, de nossa parte, inexiste, talvez valha a pena esclarecer a relação (tênue) que existe entre ele e nosso livro. Uma antiga observação de Derrida a propósito da relatividade de Einstein é, de fato, citada na paródia de Sokal. Ora, o objetivo dessa paródia era, entre outros, zombar do tipo de discurso, muito frequente no pós-modernismo norte-americano, que consiste em citar as obras de "mestres" como se substituíssem o argumento racional. Como os textos de Derrida e de Lacan, assim como os enunciados mais subjetivistas de Bohr e de Heisenberg sobre a interpretação da mecânica quântica, fazem parte das referências preferidas dessa microcultura, eles são um Cavalo de Tróia ideal para penetrar em sua cidadela.

Mas nosso livro, ao contrário da paródia, possui um alvo rigidamente limitado: o abuso sistemático de conceitos e de termos provenientes das ciências físico-matemáticas. Jacques Derrida não entra nessa categoria. Dizemos na introdução: "Embora o texto de Derrida citado na paródia de Sokal seja bastante divertido, ele parece isolado em sua obra; não incluímos, assim, um capítulo sobre Derrida neste livro". De resto, previnimos o leitor contra o "amálgama entre os procedimentos, muito diversos, dos autores" que discutimos; isso vale, a fortiori, para os autores que não discutimos, tais como Derrida. Ele tem razão, portanto, de se queixar quando a mídia, ao resenhar nosso livro, acrescenta às vezes a sua foto; mas a crítica deve ser dirigida aos jornalistas, e não a nós, que fomos os mais claros possíveis.

Estamos de acordo tanto para deplorar os amálgamas de que Derrida foi vítima quanto para deplorar os amálgamas que foram feitos entre a nossa crítica, que se atém à clareza e ao rigor _qualidades que não têm nenhuma coloração política_, e as correntes politicamente reacionárias, às quais somos totalmente estranhos e, de fato, firmemente opostos. Criticar a invocação abusiva do axioma da escolha não é a mesma coisa que atacar a segurança social.

Derrida nos faz somente uma crítica concreta: ele aponta algumas diferenças _e uma que lhe diz respeito_ entre os artigos que publicamos no "Libération" (18-19/10/97) e no "Times Literary Supplement" (17/10/97). Ele conclui que se trata de um "oportunismo" desonesto: dizer uma coisa aos francêses e uma outra aos inglêses. Infelizmente, a verdade é bem mais banal. No "Libération", nós escrevemos: "Não criticamos de forma alguma toda a filosofia francesa contemporânea, mas só abordamos os abusos dos conceitos de física e de matemática. Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault são esencialmente ausentes de nosso livro". Mas o editor do "Times Literary Supplement" nos pediu para formular essa última frase de forma afirmativa; nós a modificamos, então, para: "Pensadores célebres como Althusser, Barthes e Foucault (...) aparecem em nosso livro exclusivamente num papel menor, como admiradores dos textos que nós criticamos". Se omitimos Derrida nessa última lista, é pelo fato de que ele não aparece em nosso livro, nem sequer nesse papel menor! Notemos, de passagem, que a lista dos "excluídos" poderia ser muito mais longa: Sartre, Ricoeur, Lévinas, Canguilhem, Cavaillès, Granger e inúmeros outros se encontram totalmente ausentes de nosso livro. Nós atacamos uma forma de argumentação (ou de intimidação) que abusa de conceitos científicos, e não principalmente uma forma de pensamento.

Para terminar, repitamos pela enésima vez que absolutamente não nos opomos ao simples uso de metáforas, como parece crer Max Dorra, de quem o "Le Monde" publicou simultaneamente o ponto de vista. Não censuramos ninguém por utilizar termos correntes como "rio" ou "caverna" e nem mesmo termos que têm sentidos múltiplos, como "energia" ou "caos". Criticamos o uso de termos estritamente técnicos, como "conjunto compacto" ou "hipótese do contínuo", fora de seus contextos e sem a explicação de sua pertinência. Após tê-lo sublinhado tantas vezes _no livro e nos inúmeros debates que se seguiram_, é triste ver nossos detratores repetir as mesmas trivialidades sobre o "direito à metáfora", sem se darem o trabalho de defender um único dos textos que nós criticamos.

Alan Sokal é professor de física na Universidade Nova York.

Jean Bricmont é professor de física teórica na Universidade de Louvain (Bélgica).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.

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Descomposturas intelectuais

Descomposturas intelectuais

Jacques Derrida

especial para o "Le Monde" [Disponível também no francês original.]

Folha de São Paulo, 19 abril 1998

O "Le Monde" me pergunta qual comentário eu faria ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont _"Imposturas Intelectuais"_, presumindo que nele eu sou menos atacado do que outros pensadores. A minha resposta é: tudo isso é triste, não é mesmo? Primeiro, para o pobre Sokal. O seu nome está associado a um conto do vigário ("the Sokal's hoax" _o embuste Sokal_, como se diz nos Estados Unidos) e não a trabalhos científicos. Triste também porque a oportunidade de uma reflexão séria parece desperdiçada, ao menos num espaço amplamente público, que merece melhor destino.

Teria sido interessante estudar escrupulosamente as chamadas metáforas científicas, o seu papel, o seu estatuto, os seus efeitos nos discursos incriminados. Não somente nos "franceses"! E não somente nesses franceses. Isso exigiria que lêssemos seriamente, em sua estratégia e arranjo teóricos, um sem-número de discursos difíceis. Isso não foi feito.

Quanto a meu modesto "caso", ele é ainda mais burlesco, para não dizer extravagante. No início da impostura, nos Estados Unidos, depois do envio do embuste de Sokal para a revista "Social Text", eu fui, a princípio, um dos alvos preferidos, em particular nos jornais (eu teria muito a dizer sobre tal assunto). Pois era preciso, a todo custo, fazer o possível para desacreditar de imediato o "crédito", julgado exorbitante e embaraçoso, de um professor estrangeiro. Ora, toda a operação repousava, então, sobre algumas palavras de uma resposta improvisada num colóquio ocorrido há mais de 30 anos, em 1966, no curso da qual eu retomava os termos de uma pergunta de Jean Hyppolite. Nada mais, absolutamente nada! Além disso, a minha resposta não era facilmente atacável.

Inúmeros cientistas chamaram a atenção para a farsa em publicações acessíveis nos Estados Unidos, como Sokal e Bricmont parecem reconhecer hoje _e com que contorções!_ em seu livro destinado ao público francês. Fosse aquela curta observação discutível _o que eu facilmente aceitaria considerar_, ainda assim teria sido preciso demonstrá-la e discutir as suas consequências em meu discurso. Isso não foi feito.

Eu sou sempre econômico e prudente no uso da referência científica, e mais de uma vez tratei desse problema. Explicitamente. As várias passagens em que falo, de fato, e precisamente, sobre o "indecidível" e mesmo sobre o teorema de Gõdel não foram localizadas nem visitadas pelos censores. Tudo faz pensar que eles não leram o que era preciso ler para tomar pé das dificuldades. Sem dúvida, eles não foram capazes. Em todo caso, não o fizeram.

Uma das falsificações que mais me surpreenderam foi dizer que, hoje, eles nunca tiveram nada contra mim ("Libération", de 19/10/97: "Fleury e Limet nos reprovam um ataque injusto contra Derrida. Ora, tal ataque inexiste"). Agora, eles me relacionam precipitadamente na lista dos autores poupados ("Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault encontram-se essencialmente ausentes de nosso livro"). Ora, esse artigo do "Libération" traduz um artigo do "Times Literary Supplement", no qual meu nome (e apenas ele) havia sido oportunamente excluído da mesma lista. Aliás, é a única diferença entre as duas versões. Sokal e Bricmont acrescentaram o meu nome na França, no último momento, à lista dos filósofos honoráveis, a fim de responder a objeções embaraçosas: tudo como manda o figurino do contexto e da tática! E do oportunismo! Esses indivíduos não são sérios.

Quanto ao "relativismo" que, dizem, os inquietava _no rigoroso sentido filosófico da palavra_, não há traço dele em minha obra. Nem de uma crítica da razão e das Luzes. Antes pelo contrário. O que eu levo mais a sério, em contrapartida, é o contexto mais amplo _americano e político_, que não posso abordar aqui, no interior desses limites; e, precisamente, os problemas teóricos foram também pifiamente abordados.

Tais debates têm uma história complexa: bibliotecas de trabalhos epistemológicos! Antes de opor os "eruditos" aos outros, eles dividem o próprio campo científico. E o do pensamento filosófico. Embora por vezes me divirta, levo a sério os sintomas de uma campanha, ou mesmo de uma caça, em que os cavaleiros mal treinados certas vezes têm dificuldades de identificar a presa. E, antes de tudo, o próprio terreno.

Qual é o interesse daqueles que lançaram essa operação num certo mundo universitário e, muitas vezes perto dele, em livros ou na imprensa? Um semanário publicou duas imagens minhas (foto e caricatura) para ilustrar todo um "dossiê" em que meu nome não figurava uma única vez! Isto é sério? É honesto? Quem tinha interesse em se precipitar sobre uma farsa, em vez de participar do trabalho de que ela tristemente tomou o lugar? Iniciado há tempos, esse trabalho prosseguirá em outro lugar e de outro modo _é o que espero_ com toda a dignidade: à altura do que se acha em jogo.

Jacques Derrida é filósofo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Autor de "Espectros de Marx" (Relume-Dumará) e "Gramatologia" (Perspectiva).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.

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1998-04-11  

O rei está nu

O rei está nu

Roberto Fernández

Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 11 abril 1998

Resenha de Impostures intellectuelles, por Alan Sokal e Jean Bricmont (Paris, Odile Jacob, 1997)

"Impostura", de acordo com o dicionário, significa "embuste, engano artificioso; afetação de grandeza; superioridade, orgulho, confinante com a empáfia e a bazófia". Os cientistas Alan D. Sokal (New York University) e Jean Bricmont (Université Catholique de Louvain, Bélgica) sustentam que intelectuais de renome, associados à corrente convencionalmente conhecida como "pós-modernismo", têm incorrido sistematicamente em "abusos reiterados de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas", a ponto de constituírem verdadeiras imposturas intelectuais. Podem ser identificados quatro tipos de abusos: (1) "falar abundantemente de teorias das quais se tem, no máximo, uma vaga idéia"; (2) "importar noções das ciências exatas para as ciências humanas sem dar a menor justificação empírica ou conceitual"; (3) "exibir uma erudição superficial ao jogar, sem escrúpulos, termos especializados na cara do leitor, num contexto em que eles não têm pertinência alguma"; e (4) "manipular frases desprovidas de sentido e se deixar levar por jogos de linguagem". Neste polêmico livro, os autores fundamentam suas teses mediante numerosas citações, organizadas por autor (Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze e Guattari e Virilio) e por tema (caos, teorema de Gõdel, relatividade restrita).

Sokal e Bricmont não se atêm a pequenos erros ou imprecisões isoladas ou àquelas próprias de um uso metafórico no discurso literário ou poético. Pelo contrário, nos autores analisados, as teorias e conceitos científicos jogam um papel não marginal, seja porque são usados nos fundamentos das suas teorias (Lacan e Kristeva), seja porque são precisamente o objeto de estudo (Irigaray, Latour, Deleuze e Guattari); em todo caso, seu uso contribuiu para que fossem elogiados por seu "rigor", "extrema precisão", "erudição surpreendente" e juízos similares.

A lista de exemplos é longa e bem documentada. Atribui-se ao psicanalista Jacques Lacan o abuso de tipo (2), quando declara, sem dar nenhuma fundamentação lógica ou empírica, que o toro (estrutura topológica correspondente a um anel) é "exatamente a estrutura do neurótico" e que outras estruturas topológicas correspondem a outras patologias mentais. Seu uso dos números imaginários é declaradamente feito como metáfora, mas conduz a afirmações curiosas como: o "órgão eréctil (...) é igualável à raiz de -1". Os textos em que Lacan recorre à lógica matemática, por outra parte, são considerados exemplos dos abusos (2) e (3) ao mesmo tempo: "Lacan exibe diante de não especialistas seus conhecimentos de lógica matemática; mas (...) a ligação com a psicanálise não está sustentada por lógica alguma". Sokal e Bricmont absolvem Lacan dos abusos de tipo (1), ainda que em certos textos ele apresente uma definição incorreta de conjuntos abertos, definições sem sentido da noção de limite e de conjuntos compactos, e confunda números irracionais com imaginários.

Os trabalhos sobre linguística e semiótica de Julia Kristeva ilustram também exemplos de abusos de tipo (2) e (3). Conceitos matemáticos delicados são introduzidos sem que se explique sua possível relação com a linguística e revelando óbvia falta de compreensão: o axioma da escolha, que justamente permite provar a existência de conjuntos sem construi-los explicitamente, é invocado como implicando uma "noção de construtividade"; a hipótese do contínuo é mencionada, se bem que o conjunto de todos os livros possíveis seja apenas enumerável, e o muito popular teorema de Gõdel é interpretado exatamente ao contrário. A intelectual feminista Luce Irigaray, por sua vez, num ensaio sobre o "subdesenvolvimento" da mecânica dos fluidos (identificados com a feminilidade), confunde a dificuldade matemática para obter soluções das equações de Navier-Stokes com a "impotência da lógica" e demonstra não compreender que elas são derivadas usando aproximações que excluem sua aplicação a escalas moleculares.

Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio valem-se de abusos de tipo (1) e (4). Sokal e Bricmont selecionam extensas citações, inclusive uma de quase três páginas, em que se justapõem numerosos termos científicos (atrator estranho, exponencial, fractal, caos, singularidade, energia potencial, superfície topológica, função, partícula etc.), em parágrafos intrincados e sem concatenação lógica de argumentos, num jogo de analogias baseadas nos diferentes sentidos vagamente atribuídos a esses termos na linguagem comum.

Os escritos de Virilio são, talvez, os mais abertos à sátira. Por exemplo, no que diz respeito ao papel das velocidades, ele confunde velocidade com aceleração e quantidade de movimento com a equação logística. Mas Deleuze e Guattari providenciam ainda outro tipo de exemplo importante. Em suas análises de filosofia da matemática, eles retomam confusões devidas a Hegel (classificação errada de frações, noção de função superada há 150 anos) e fazem uma descrição obscura e complicada do cálculo infinitesimal, enquanto marcam a necessidade de uma "exposição rigorosa" de seus princípios. Aparentemente, eles ignoram que tal exposição existe desde o início do século passado.

O capítulo dedicado a Bruno Latour é particularmente revelador, pois ilustra os riscos de se tentar uma análise profunda a partir de uma compreensão superficial. Com o propósito de demonstrar que a teoria da relatividade restrita é uma construção social, ele faz uma leitura semiótica do livro "Relativity", de Einstein, no qual se apresentam os argumentos baseados em trens, observadores e sinais luminosos, que todo estudante de física conhece bem. Latour engana-se e centra sua análise em elementos puramente pedagógicos da exposição de Einstein. Por exemplo, atribui grande importância à existência de três sistemas de referência a uma só vez (isso pode acontecer ocasionalmente numa exposição didática, mas a teoria trata da relação entre dois sistemas) e ao fato de os observadores serem humanos (eles são humanos nos exemplos do livro de Einstein, mas na maioria dos experimentos e fenômenos os "observadores" são instrumentos, discos de computador e até partículas elementares), e confere um papel privilegiado ao "narrador" (a teoria não tem nenhum sistema privilegiado nem "narrador", se bem que a exposição pedagógica precise de um).

De fato, a teoria da relatividade conta com uma rica história de mal-entendidos por parte de filósofos. Os que se originam na interpretação errada de Bergson são especialmente persistentes, como fazem notar Sokal e Bricmont num capítulo muito claro e explícito. Henri Bergson, por razões puramente filosóficas, recusou-se a aceitar as noções einsteinianas de simultaneidade e tempo próprio e procurou estender o princípio de relatividade às acelerações. Seus argumentos conduzem a predições que contradizem experiências atualmente conhecidas. No entanto, os erros bergsonianos reaparecem na obra de filósofos posteriores, como Jankélevich, Merleau-Ponty e Deleuze.

A teoria do caos é outra vítima de maltrato em livros e ensaios bastante difundidos. Sokal e Bricmont expõem e clarificam os erros mais típicos: o caos, quer dizer, a sensibilidade às condições iniciais, não marca nenhum "limite" ou "cul de sac" da ciência; pelo contrário, tem aberto novas possibilidades de pesquisa. O caos não significa o fim do determinismo (aparece em equações perfeitamente determinísticas), ainda que obrigue a adotar um sentido probabilístico da preditividade comparável ao adotado em mecânica estatística no último século. O caos não significa um descrédito à mecânica newtoniana, mas sim seu renascimento. De fato, esta última, considerada o paradigma do "pensamento linear", leva a equações não-lineares, que algumas vezes exibem caos, se bem que a mecânica quântica, considerada mais próxima do "pensamento não-linear" preconizado pelos pós-modernistas, seja exatamente linear.

O livro é escrito de forma direta, incisiva, sem ambiguidades, pedantismo, paráfrases ou elipses. Sokal e Bricmont não se interessam pelo vôo literário nem pelas sutilezas acadêmicas; querem apresentar seus pontos sem dar lugar a dúvidas. Explicam pacientemente os aspectos científicos (com ajuda de uma lista de referências que pode ser de grande utilidade para os interessados em iniciar-se nesses temas) e expõem com franqueza suas intenções: "defender os cânones da racionalidade" e da honestidade intelectual. Sua posição filosófica contraria o relativismo cognitivo e questiona as teses de Popper, Quine, Kuhn e Feyerabend (que nutrem o ceticismo epistemológico) e do "programa forte" em sociologia da ciência. Essa franqueza algumas vezes chega ao limite da agressão verbal e introduz no livro um tom quase fundamentalista, que pode provocar discussões desnecessariamente marcadas pela emoção.

Mas o legado mais importante deste livro é, precisamente, o catálogo de exemplos de erros, de falta de compreensão e até de preguiça intelectual de pensadores contemporâneos, quando analisam o conhecimento científico recente e não tão recente. É um mostruário sólido, convincente, irrecusável, que tem existência independente das opiniões dos compiladores. Está ali para que cada um julgue. Compreensivelmente, dentro da polêmica gerada pelo livro, ninguém põe em dúvida o fato de que os erros apontados são realmente erros. As críticas referem-se antes à relevância desses escritos dentro da obra dos autores considerados e às intenções finais de um livro como este. Sokal e Bricmont esclarecem que não julgam o resto das obras dos autores analisados, mas apenas as referências à física e à matemática (todavia, gostariam que outros, mais competentes, julgassem tendo em conta as imposturas apontadas), nem discutem se as imposturas são premeditadas ou de boa fé (o título do livro fala de "imposturas", não de "impostores"). E, se bem Sokal e Bricmont confessem intenções filosóficas e até políticas, elas não vêm ao caso.

Os exemplos no livro falam por si. Para alguém com uma mínima formação científica, sugerem diversas questões para debate. Será que o hiato entre as "duas culturas" de Snow foi ampliado ou fossilizado? Será que todo um setor da intelectualidade, cuja atividade se baseia no discurso, nas argumentações teóricas, no confronto de pontos de vista, está perdendo a capacidade de compreender o método científico submetido ao controle inexorável dos experimentos? Será que a analogia injustificada e as "provas" por combinação de frases sugestivas são uma metodologia aceitável nas humanidades? Será que os argumentos baseados na precedência, inerentes às pesquisas nas humanidades, degeneraram-se num princípio de autoridade que acha os erros de Hegel mais confiáveis que 150 anos de desenvolvimento matemático? (Não é isso uma regressão aos tempos em que, quando as observações discrepavam da doutrina de Aristóteles, se preferia esta última?) Ou será que um verdadeiro menosprezo pela lógica e pelos desenvolvimentos científicos tem sido instalado em estratos visíveis da intelectualidade, perpetuado por círculos na mídia inclinados a modas ou não qualificados e amparado na falta generalizada de educação científica, na indiferença (próxima ao pedantismo dos próprios cientistas) e numa tradição humanista de tolerância e não comprometimento, que deixa nas mãos do tempo a depuração do que vale?

É indubitável que o trabalho de Sokal e Bricmont abre a oportunidade para um debate muito saudável e necessário, o qual, se for desenvolvido com grandeza, pode inclusive catalisar uma aproximação entre a ciência e as humanidades, em sua busca comum da compreensão da natureza e do espírito humano.

Roberto Fernández é matemático, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e membro da comissão organizadora do simpósio "Visões de Ciência: Encontros com Sokal e Bricmont", que será realizado na USP nos próximos dias 27 e 28 de abril.

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