Intelectuais

ALAN SOKAL

ALAN SOKAL

Desse modo, a relatividade geral nos obriga a adotar noções radicalmente novas e contra-intuitivas a respeito do espaço, do tempo e da causalidade; por isso, não surpreende que tenha provocado profundo impacto não apenas nas ciências naturais como também na filosofia, na crítica literária e nas ciências humanas.

Por exemplo, num célebre simpósio realizado há três décadas sobre "Les Langages Critiques et les Sciences de l'Homme", Jean Hyppolite levantou uma questão incisiva sobre a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Jacques Derrida.

A perspicaz resposta de Derrida foi ao âmago da relatividade geral clássica: "A constante einsteiniana não é uma constante, não é um centro. É o próprio conceito de variabilidade _é, finalmente, o conceito do jogo. Em outras palavras, não é o conceito de alguma coisa _de um centro a partir do qual um observador pode dominar o campo_, mas o próprio conceito do jogo".

Em termos matemáticos, a observação de Derrida liga-se à invariância da equação de campo de Einstein sob difeomorfismos (auto-aplicações da variedade espaço-temporal infinitamente diferenciáveis mas não necessariamente analíticas) não-lineares do espaço-tempo. O ponto-chave é que esse grupo de invariância "age transitivamente": isso significa que qualquer ponto do espaço-tempo, caso exista, pode ser transformado em qualquer outro. Dessa forma, o grupo de invariância de dimensão infinita dissolve a distinção entre observador e observado; o de Euclides e o G de Newton, antes imaginados constantes e universais, são agora percebidos em sua inelutável historicidade; e o observador putativo se torna fatalmente de-centrado, desconectado de qualquer ligação epistêmica com um ponto do espaço-tempo que não pode mais ser definido apenas pela geometria.

Alan Sokal é professor de física na Universidade de Nova York. Tem colaborações científicas na Itália e no Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais). Durante o governo sandinista, ensinou matemática na Universidade Nacional da Nicarágua. Junto com o belga Jean Bricmont escreve "Les Impostures Scientifiques des Philosophes (Post-)Modernes" _em que se examinam as bobagens matemáticas de Lyotard, Baudrillard, Deleuze, Guattari e Virilio.


Além das referências do texto, o "caso Sokal" apareceu nas primeiras páginas do "New York Times", do "International Herald Tribune" e do "Observer". Naturalmente, está dando origem a considerável trânsito de e-mails na Internet. Home pages que vale a pena visitar:


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# 8/11/2009 10:10:00 AM, Comentários, Links para esta postagem,

Imposturas e fantasias

Imposturas e fantasias

Alan Sokal e Jean Bricmont

Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 13 junho 1998

Já nos habituamos a ver nosso livro "Impostures Intellectuelles" ser debatido por pessoas que não o leram. Porém, é surpreendente que alguém que obviamente leu nosso livro _um professor de filosofia, aliás_ possa ter escrito uma longa resenha, em um jornal sério, na qual ignora quase tudo o que escrevemos no livro e ainda nos atribui coisas que não escrevemos (Jornal de Resenhas, nº 38, 9/5/98, pág. 10).

Nosso livro surgiu a partir da peça pregada por um de nós, que publicou, na revista americana de estudos culturais "Social Text", uma paródia repleta de citações sem sentido, mas infelizmente autênticas, a respeito da física e da matemática, extraídas de obras de eminentes intelectuais franceses e americanos. No entanto, apenas uma pequena parte do dossiê descoberto durante a pesquisa bibliográfica de Sokal pôde ser incluída na paródia. Após mostrar esse longo dossiê a amigos, cientistas ou não, fomos (lentamente) nos convencendo de que poderia valer a pena torná-lo acessível a um público mais amplo. Desejávamos explicar, em termos não técnicos, por que as passagens citadas são absurdas ou, em muitos casos, simplesmente carentes de sentido; e também desejávamos discutir as circunstâncias culturais que permitiram a esses discursos adquirir tamanho renome e permanecer, até então, sem exame. Um segundo alvo de nosso livro é o relativismo cognitivo, a saber, a idéia de que as asserções fatuais _sejam elas mitos tradicionais ou teorias científicas modernas_ podem ser consideradas verdadeiras ou falsas apenas "em relação a uma cultura particular".

Como Bento Prado Jr. reage a este livro? Deixemos de lado os epítetos pejorativos: "panfleto", "ressentimento", "red neck", "estilo monsieur Homais", "15 minutos de notoriedade". É óbvio que ele não gosta de nosso livro, mas honestamente não compreendemos por quê. Ele admite nossa tese principal: "Este livro põe em ridículo, muitas vezes com razão, um uso obscuro da linguagem" por parte de famosos filósofos-literatos franceses (Lacan, Kristeva, Baudrillard, Deleuze e outros). Ele não procura defender nenhum dos textos que criticamos, e ainda acrescenta que "a antologia levantada pelos dois autores poderia ser muito ampliada". Muito bom.

Quais são então as suas críticas?

Ele se queixa de nosso alvo _"a nebulosa pós-moderna"_ ser "definido, ele mesmo, de maneira muito nebulosa: trata-se da nebulosa 'pós-estruturalista' ou 'desconstrucionista' ". Mas essa "definição" é invenção do próprio Prado; ademais, ele suprime a definição dada no primeiro parágrafo de nosso livro: "Uma corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista do Iluminismo, por elaborações teóricas independentes de qualquer teste empírico, e por um relativismo cognitivo e cultural que trata as ciências como 'narrativas' ou construções sociais como quaisquer outras".

Prado afirma, sem apresentar a mínima evidência, que nosso alvo pós-moderno "inclui quase toda a epistemologia e mesmo a filosofia de língua inglesa". Ele nos atribui a idéia de que "o pobre Quine arca com a responsabilidade de desligar a ciência do real (...). Descobrimos que Quine é desconstrucionista". Sejamos sérios! Quine figura apenas uma vez em nosso livro (págs. 65-66), em que apoiamos sua asserção de que os enunciados científicos não podem ser testados individualmente, mas criticamos as formulações mais extremas dessa tese.

Prado chega a nos atribuir uma "arqueologia da Desrazão que explica o delírio epistemológico-cosmológico de um certo feminismo a partir dos 'equívocos' lógico-semânticos de Quine". Mas isso é pura invenção, sem nenhuma base em nosso livro. Nosso capítulo filosófico não menciona o feminismo e nosso capítulo sobre Irigaray não menciona Quine.

Prado afirma que relegamos Hegel "ao inferno do 'irracionalismo'". Mas Hegel é mencionado só em duas breves passagens de nosso livro (págs. 16-17, 146) e somente a propósito de seus escritos sobre o cálculo diferencial e integral _erros que foram repetidos, 150 anos depois, por Deleuze. Não tomamos nenhuma posição a respeito da filosofia de Hegel.

Prado zomba de termos supostamente considerado Bergson um pós-modernista. De fato, escrevemos (pág. 166): "Obviamente, Bergson não é um autor pós-moderno. (...) Há certamente uma seriedade em Bergson que contrasta nitidamente com a desenvoltura e o caráter 'blasé' dos pós-modernos". Por uma razão diferente, incluímos um capítulo sobre os mal-entendidos de Bergson e seus sucessores (Jankélévitch, Merleau-Ponty e Deleuze) a respeito da relatividade: porque os consideramos um exemplo que ilustra a "trágica ausência de comunicação entre os cientistas e certos filósofos (e não os menores)" (pág. 168) _uma situação que persiste ainda hoje, a julgar pelos próprios mal-entendidos do professor Prado.

Ele afirma que "Bergson jamais criticou, é claro, a teoria (da relatividade) enquanto tal" e que "Bergson reconheceu que seus argumentos teóricos (...) estavam literalmente errados". Ambas as asserções são falsas. Como mostramos (págs. 175-176), Bergson fez uma predição empírica a respeito do comportamento de relógios em movimento que é diferente da predição da teoria da relatividade (talvez ele não tivesse percebido que sua predição contradiz a relatividade, mas essa é uma outra questão; na verdade, um de nossos objetivos é refutar a opinião difundida de que Bergson não criticou a relatividade, mas apenas sua interpretação).

E embora Bergson não tenha publicado "Durée et Simultanéité" (Duração e Simultaneidade) após 1931, ele repetiu as mesmas idéias em "La Pensée et le Mouvant" (O Pensamento e o Movente), de 1934, e, pelo que sabemos, nunca as negou e muito menos explicou o que havia de errado com elas. Mas, se o tivesse feito, isso apenas reforçaria nossa questão principal, que não concerne a Bergson mas a seus sucessores: por que eles repetiram os mesmos erros décadas depois de terem sido corrigidos, paciente e pedagogicamente, por numerosos físicos?

Prado conclui dizendo-nos condescendentemente que, "desencaminhados por seus informantes, (Sokal e Bricmont) não leram as melhores páginas que Merleau-Ponty consagrou à questão Bergson-Einstein. Deveriam ler os ensaios 'Bergson Se Fazendo' e 'Einstein e a Crise da Razão' ". Perguntamo-nos como Prado pode estar tão seguro acerca do que temos e do que não temos lido. Não apenas conhecemos esses ensaios (que contêm graves mal-entendidos sobre a relatividade), como criticamos explicitamente um deles em nosso livro (ver nota 232 nas págs. 180-181).

Cabe notar que as confusões de Merleau-Ponty sobre a relatividade são sistemáticas: repetem-se em suas conferências no final dos anos 50 no Collège de France, conforme examinamos (págs. 179-181). Essas mesmas confusões reaparecem no livro "Le Bergsonisme" (1968), de Deleuze.

Consideremos, finalmente, o capítulo de nosso livro dedicado à filosofia da ciência: trata-se de um esforço pedagógico para esclarecer os fundamentos conceituais do conhecimento científico e, em particular, para desfazer algumas confusões comuns a respeito de questões como a impregnação teórica da observação, a subdeterminação das teorias pelos dados e a suposta incomensurabilidade entre paradigmas. Em particular, examinamos algumas ambiguidades nos escritos de Kuhn e Feyerabend e criticamos a corrente "construtivista social" radical da sociologia da ciência (Barnes, Bloor, Latour).

Não pretendemos que essas idéias sejam novas; de fato, elas se enquadram no "mainstream" da filosofia analítica contemporânea da ciência. Nossa principal preocupação é, antes, desfazer os mal-entendidos que têm proliferado dentro de muitos domínios das ciências sociais e que têm conduzido, pelo descuido de pensamento e linguagem, a um relativismo cognitivo radical.

Estamos cientes de que essas questões filosóficas são sutis e ficaremos contentes se nossas idéias forem submetidas a uma crítica vigorosa. Infelizmente, os comentários de Prado pouco contribuem para esse debate, ao refletirem uma compreensão confusa daquilo que escrevemos. Prado afirma que consideramos que o relativismo é "hegemônico na epistemologia", mas nós não dissemos nada disso. Muito pelo contrário, o relativismo é uma tendência minoritária dentro da filosofia analítica, mas se tem tornado dominante em certos setores das ciências humanas, mais como um vago "Zeitgeist" ("espírito do tempo") do que como uma doutrina filosófica coerente.

Prado distorce nossas idéias sobre a relação entre conhecimento científico e conhecimento ordinário, ao desconsiderar nossa distinção entre metodologia e conteúdo. Insistimos na continuidade entre o "método científico" e a atitude racional cotidiana, mas salientamos que os resultados científicos "amiúde entram em conflito com o senso comum" (pág. 57).

Em suma, estamos perplexos diante da reação a nosso livro. Quando inicialmente tomamos contato com os textos de Lacan, Deleuze e outros, ficamos chocados com seus abusos grosseiros, mas não sabíamos se valeria a pena gastar tempo para revelá-los. Esses autores ainda são levados a sério? Foram pessoas das ciências humanas que nos convenceram de que poderia valer a pena. Assim, esperávamos dar uma pequena contribuição a esses campos, acrescentando mais uma voz contra o aviltamento do pensamento pela proliferação de um jargão inútil e pretensioso.

Sabíamos, é claro, que seríamos duramente atacados pelos nossos alvos e seus discípulos. Mas uma coisa que não prevíamos era a hostilidade agressiva de algumas pessoas que não são, pelo visto, fãs dos autores criticados. Talvez nosso livro tenha estimulado "uma estratégia de defesa de território" por parte de pessoas que, como Prado, erroneamente o tomaram como um lance numa disputa territorial. Mas não escrevemos este livro para defender as ciências naturais das ameaças do pós-modernismo e do relativismo; esse perigo é quase inexistente. Também não se trata de um ataque à filosofia ou às ciências humanas em geral; muito pelo contrário, é um modesto esforço para apoiar nossos colegas nesses campos, que há tempos denunciam os efeitos perniciosos do jargão obscurantista e do relativismo visceral. As reações corporativistas contra nosso livro estão, pois, fora de lugar.

Obviamente, Prado e muitos outros não gostam de nosso livro. Mas por que razão? Sua crítica baseia-se inteiramente em suas próprias fantasias, não em uma leitura honesta daquilo que escrevemos. Uma vez eliminadas essas fantasias, seu artigo não contém um único argumento racional contra nossas teses. Talvez uma modesta manifestação de racionalismo provoque profundas reações irracionalistas.

Alan Sokal é professor de física na Universidade de Nova York (EUA).

Jean Bricmont é professor de física teórica na Universidade Católica de Louvain (Bélgica).

Tradução de Caetano Plastino.

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# 5/13/1998 12:00:00 AM, Comentários, Links para esta postagem,

Descomposturas intelectuais

Descomposturas intelectuais

Jacques Derrida

especial para o "Le Monde" [Disponível também no, francês original.]

Folha de São Paulo, 19 abril 1998

O "Le Monde" me pergunta qual comentário eu faria ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont _"Imposturas Intelectuais"_, presumindo que nele eu sou menos atacado do que outros pensadores. A minha resposta é: tudo isso é triste, não é mesmo? Primeiro, para o pobre Sokal. O seu nome está associado a um conto do vigário ("the Sokal's hoax" _o embuste Sokal_, como se diz nos Estados Unidos) e não a trabalhos científicos. Triste também porque a oportunidade de uma reflexão séria parece desperdiçada, ao menos num espaço amplamente público, que merece melhor destino.

Teria sido interessante estudar escrupulosamente as chamadas metáforas científicas, o seu papel, o seu estatuto, os seus efeitos nos discursos incriminados. Não somente nos "franceses"! E não somente nesses franceses. Isso exigiria que lêssemos seriamente, em sua estratégia e arranjo teóricos, um sem-número de discursos difíceis. Isso não foi feito.

Quanto a meu modesto "caso", ele é ainda mais burlesco, para não dizer extravagante. No início da impostura, nos Estados Unidos, depois do envio do embuste de Sokal para a revista "Social Text", eu fui, a princípio, um dos alvos preferidos, em particular nos jornais (eu teria muito a dizer sobre tal assunto). Pois era preciso, a todo custo, fazer o possível para desacreditar de imediato o "crédito", julgado exorbitante e embaraçoso, de um professor estrangeiro. Ora, toda a operação repousava, então, sobre algumas palavras de uma resposta improvisada num colóquio ocorrido há mais de 30 anos, em 1966, no curso da qual eu retomava os termos de uma pergunta de Jean Hyppolite. Nada mais, absolutamente nada! Além disso, a minha resposta não era facilmente atacável.

Inúmeros cientistas chamaram a atenção para a farsa em publicações acessíveis nos Estados Unidos, como Sokal e Bricmont parecem reconhecer hoje _e com que contorções!_ em seu livro destinado ao público francês. Fosse aquela curta observação discutível _o que eu facilmente aceitaria considerar_, ainda assim teria sido preciso demonstrá-la e discutir as suas consequências em meu discurso. Isso não foi feito.

Eu sou sempre econômico e prudente no uso da referência científica, e mais de uma vez tratei desse problema. Explicitamente. As várias passagens em que falo, de fato, e precisamente, sobre o "indecidível" e mesmo sobre o teorema de Gõdel não foram localizadas nem visitadas pelos censores. Tudo faz pensar que eles não leram o que era preciso ler para tomar pé das dificuldades. Sem dúvida, eles não foram capazes. Em todo caso, não o fizeram.

Uma das falsificações que mais me surpreenderam foi dizer que, hoje, eles nunca tiveram nada contra mim ("Libération", de 19/10/97: "Fleury e Limet nos reprovam um ataque injusto contra Derrida. Ora, tal ataque inexiste"). Agora, eles me relacionam precipitadamente na lista dos autores poupados ("Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault encontram-se essencialmente ausentes de nosso livro"). Ora, esse artigo do "Libération" traduz um artigo do "Times Literary Supplement", no qual meu nome (e apenas ele) havia sido oportunamente excluído da mesma lista. Aliás, é a única diferença entre as duas versões. Sokal e Bricmont acrescentaram o meu nome na França, no último momento, à lista dos filósofos honoráveis, a fim de responder a objeções embaraçosas: tudo como manda o figurino do contexto e da tática! E do oportunismo! Esses indivíduos não são sérios.

Quanto ao "relativismo" que, dizem, os inquietava _no rigoroso sentido filosófico da palavra_, não há traço dele em minha obra. Nem de uma crítica da razão e das Luzes. Antes pelo contrário. O que eu levo mais a sério, em contrapartida, é o contexto mais amplo _americano e político_, que não posso abordar aqui, no interior desses limites; e, precisamente, os problemas teóricos foram também pifiamente abordados.

Tais debates têm uma história complexa: bibliotecas de trabalhos epistemológicos! Antes de opor os "eruditos" aos outros, eles dividem o próprio campo científico. E o do pensamento filosófico. Embora por vezes me divirta, levo a sério os sintomas de uma campanha, ou mesmo de uma caça, em que os cavaleiros mal treinados certas vezes têm dificuldades de identificar a presa. E, antes de tudo, o próprio terreno.

Qual é o interesse daqueles que lançaram essa operação num certo mundo universitário e, muitas vezes perto dele, em livros ou na imprensa? Um semanário publicou duas imagens minhas (foto e caricatura) para ilustrar todo um "dossiê" em que meu nome não figurava uma única vez! Isto é sério? É honesto? Quem tinha interesse em se precipitar sobre uma farsa, em vez de participar do trabalho de que ela tristemente tomou o lugar? Iniciado há tempos, esse trabalho prosseguirá em outro lugar e de outro modo _é o que espero_ com toda a dignidade: à altura do que se acha em jogo.

Jacques Derrida é filósofo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Autor de "Espectros de Marx" (Relume-Dumará) e "Gramatologia" (Perspectiva).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.

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# 4/19/1998 12:00:00 AM, Comentários, Links para esta postagem,

O telhado de vidro do relativismo

O telhado de vidro do relativismo

Cláudio Weber Abramo

Folha de São Paulo, 15 setembro 1996

Nunca, na história da filosofia, uma vitória foi tão completa como a que goza hoje a epistemologia pós-moderna, em especial sua vertente relativista. Por meio da expansão cognitiva imbricada no indeterminismo quântico e na teoria do caos, a ciência pós-moderna abole o conceito de realidade "física" e privilegia a não-linearidade e a descontinuidade. Ao mesmo tempo, por meio do (meta)cruzamento dos conceitos, desconstrói e transcende as distinções metafísicas cartesianas entre humanidade e Natureza, observador e observado, sujeito e objeto. Baseia sua perspectiva ontológica sobre a trama dinâmica das relações entre o todo e as partes; no lugar de essências individuais fixas, conceitualiza interações e fluxos.

É finalmente reconhecida a relevância do simbolismo e da representação, que liberam as ciências da camisa-de-força das fronteiras interdisciplinares e propiciam a transgressão criadora. Torna-se cada vez mais aparente que os objetos naturais são construídos social e linguisticamente, o que dissolve sua putativa concretude. A "realidade objetiva", autoritária e elitisticamente imposta pela ciência tradicional, mostra ser o que sempre foi: uma ilusão ideologicamente imposta por um establishment científico a serviço de interesses retrógrados.

Em nenhum lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de Derrida.

Tão extensa e fundamental é a revolução por que passa a teoria quântica da gravitação que abole até o conceito de existência que forma a base da tradição filosófica ocidental. Por isso, não surpreendentemente, são muito profundas suas implicações culturais e políticas. No entanto, o desabrochar dessas implicações numa práxis política progressista ainda dependerá de extenso trabalho teórico, a começar pelo fundamento mais íntimo do empreendimento científico, a matemática. Uma ciência liberadora do homem não poderá se completar na ausência de uma profunda revisão do cânone matemático dominante desde Galileu: notoriamente capitalista, patriarcal e militarista.


Neste ponto convida-se o eventual leitor a uma reflexão. O que se acabou de ler é ou não é plausível à luz do que se lê por aí? Não terá ele encontrado em leituras recentes o vocabulário, as referências cruzadas e o particular modo de inferência presentes no acima?

"Fluxo", "ênfase dialética", "não-linearidade", "teoria do caos", "indeterminismo quântico", "metacruzamento", "emancipação cognitiva", metacrítica" compõem um léxico decerto familiar. Também é familiar a justaposição desse léxico numa sintaxe, digamos, fluxional: a uma frase se sucede outra, e outra, e outra, dando lugar a um "texto", objeto e fim da novel área dos "estudos culturais". Lógica, fundamentos, encadeamentos inteligíveis, pertinência, nem pensar.

No caso em questão, o "texto" afirma, entre outras barbaridades, que a realidade física não existe e que um terreno de investigação que lida com o micromundo (a teoria quântica de campos) estaria não só fruindo inspiração dos escritos de Derrida como propiciando suporte às especulações de Lacan e, ainda, fornecendo suporte a uma "física libertária" com "profundas" implicações para a cultura e a prática política! Afirma que os fundamentos da matemática são "capitalistas, patriarcalistas e militaristas"!

Ora, pois, se dirá, apresentar o "texto" acima como paradigma do que se publica na área dos "estudos culturais" é um exagero de má-fé. Nenhuma publicação respeitável poderia considerar seriamente a aceitação de tamanhas absurdidades em suas páginas.

Não foi, porém, o que aconteceu na prática. Explica-se: o "texto" em questão não foi inventado para a presente ocasião. Trata-se de um resumo (um pouco "desconstruído" e levemente adicionado de divertimentos próprios) de artigo lunático que os editores da prestigiosa revista "Social Text", "vade mecum" dos "estudos culturais" norte-americanos, aceitaram para publicação em uma edição especial (primavera/verão 96) dedicada à filosofia e à sociologia da ciência.

O autor da peça (intitulada "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" _Uma Transgressão de Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica) é Alan Sokal, professor de física da Universidade de Nova York. Poucas semanas após a publicação do artigo na "Social Text", outra revista, "Lingua Franca", trouxe (edição de maio/junho de 1996) um pequeno escrito do mesmo Sokal em que ele denuncia seu próprio "texto" e explica a operação:

"Há alguns anos, venho me preocupando com um declínio aparente nos critérios de rigor intelectual vigorantes em determinados rincões das humanidades acadêmicas norte-americanas. (...) Para testar esses critérios, decidi fazer um experimento modesto (embora admitidamente incontrolado): será que uma revista de primeira linha na área dos 'estudos culturais' _cujo coletivo editorial inclui luminares como Fredric Jameson e Andrew Ross_ publicaria um artigo abundantemente preenchido com absurdidades, caso (a) soasse bem e (b) alimentasse os preconceitos ideológicos de seus editores? Infelizmente, a resposta é afirmativa".

Além de expor a debilidade das práticas pós-modernas, Sokal tinha uma motivação política para a peça que pregou. A dissolução da idéia de que o ser humano pode obter conhecimento objetivo a respeito do mundo, preconizada pelo relativismo, bem como a noção pós-moderna de que aquilo que possamos afirmar sobre a realidade não passa de "constructos", solapam os esforços de elaborar uma crítica progressista da ordem social. Como se tornou impossível desmoralizar as maluquices pós-modernas por meio do debate racional, Sokal induziu o alvo a atirar no próprio pé.

Ele estruturou seu artigo a partir da justaposição de fontes genuínas. Mesclou referências científicas verdadeiras a inacreditáveis absurdos sobre a física e a matemática provenientes de luminares pós-modernos como Deleuze, Derrida, Guattari, Lacan, Lyotard, Stanley Aronowitz (membro do corpo diretor da revista, citado nada menos que 13 vezes) e Andrew Ross (responsável pela edição do número em que o artigo apareceu, citado quatro vezes).

Por que o experimento de Sokal funcionou? Conforme ele aponta em um "Pós-escrito" enviado à "Social Text" após a eclosão do escândalo, a chave do sucesso foi o fato de seu artigo mimetizar as características do gênero "pós-moderno":

"Uma mistura de verdades, meias-verdades, um-quarto-de-verdades, falsidades, inferências inválidas e sentenças sintaticamente corretas, mas carentes de qualquer sentido. (...) Também empreguei outras estratégias consagradas (embora às vezes inadvertidamente) no gênero: apelos à autoridade em lugar da lógica; especulações apresentadas como ciência estabelecida; analogias forçadas e mesmo absurdas; uma retórica que soa correta, mas cujo significado é ambíguo; e confusões entre os significados técnico e corriqueiro das palavras".

O episódio lança luz sobre os costumes de uma certa casta acadêmica que tem contribuído fortemente para o estado de deliquescência em que se encontra a vida intelectual. Mesmo após a exposição do vexame, os editores da "Social Text" perseveraram nas mesmas práticas que os haviam levado ao ridículo. Num editorial cheio de subterfúgios publicado na Internet e depois na edição de julho/agosto 96 na "Lingua Franca", Bruce Robbins e Andrew Ross, co-editores do número fatídico, justificam assim o fato de o artigo ter passado por seu crivo:

"Concluímos que se tratava de uma tentativa esforçada de um cientista profissional de encontrar na filosofia pós-moderna algum tipo de afirmação para desenvolvimentos em seu próprio terreno. (...) Caso viesse de um humanista ou cientista social, o artigo de Sokal teria sido considerado um tanto obsoleto (fica-se imaginando as sandices que seriam exigidas para poder ser classificado como "up to date"...). Tratando-se de artigo de um cientista natural, julgamos ser plausivelmente sintomático de como alguém como Sokal poderia aproximar-se do campo da epistemologia pós-moderna, isto é, procurando desajeitada, mas assertivamente, capturar o 'clima' ('feel') da linguagem profissional da área, escudando-se ao mesmo tempo numa armada de notas de rodapé para aliviar sua sensação de vulnerabilidade. Em outras palavras, lemos o artigo mais como um ato de boa-fé quanto ao tipo (de escrito) que poderia valer a pena encorajar, do que como um conjunto de argumentos com que concordássemos. (...) Seu estatuto como paródia não altera substancialmente nosso interesse na peça como documento sintomático. De fato, a conduta de Sokal se transformou rapidamente em objeto de estudo para aqueles que estudam o comportamento de cientistas".

Fora o autoritarismo paternalista transparente nessas palavras, consegue-se ver claramente por que "Social Text" aceitou o artigo, como aceitara e encorajará outros, tão hilariantes como o de Sokal, embora genuínos: porque considera a presença de um "clima" condição suficiente para definir a pertinência à "linguagem profissional da área". Foi essa exatamente a hipótese formulada por Sokal em seu experimento, e confirmada pelo ato de publicação.

Observe-se, ainda, como opera o processo de regeneração perpétua característico do pós-modernismo: já tentam transformar o caso em objeto de estudo, em que Sokal passa a desempenhar o papel de rato de laboratório para experiências sobre uns cientistas pobres coitados incapazes de ler filosofia (a filosofia lá deles, bem entendido).

Quanto aos cientistas propriamente ditos, que passam a existência em busca de explicações sobre o funcionamento do mundo e têm coisa mais séria com que se preocupar, a "filosofia pós-moderna" não pode passar de piada. E foi assim, como uma piada até previsível, que o "caso Sokal" foi recebido por essa comunidade. (A edição de agosto do "New York Review of Books" traz artigo do físico Prêmio Nobel Steven Weinberg em que se analisam pacientemente os erros científicos e filosóficos cometidos pelos "pós-modernos" retratados no artigo de Sokal.) Nas humanidades, território de caça por excelência do pós-modernismo, a coisa pegou mais fundo.

Sokal informa via e-mail que "o escândalo parece estar tendo algum efeito em nosso pequeno mundo acadêmico _especialmente nas humanidades e nas ciências sociais, que afinal constituíam o alvo do experimento. Já se programaram inúmeros debates para o início do ano acadêmico, neste mês (fui convidado para mais de dez, em universidades de todo o país). O escândalo deu origem a uma discussão em que começam a ser ouvidos outra vez os velhos argumentos racionalistas contra o pós-modernismo. Enfim, suspeito que um certo tipo de prosa ininteligível e recheada de jargão tenha recebido um golpe mortal, pois os comitês universitários de promoção acadêmica estarão muito menos intimidados do que já foram por 'teorias' aparentemente profundas, mas incompreensíveis".

Receia-se que o otimismo de Sokal quanto à academia norte-americana não possa ser transferido para paragens remotas como o Brasil, em que a vida intelectual morreu por suicídio. É muito provável que continuemos a nos deparar com "textos" eivados de uma mixórdia de indefinidas categorias filosóficas misturadas a mal digeridas menções à teoria da relatividade geral, ao indeterminismo quântico, à teoria do caos, ao teorema de Gõdel, tudo servindo de suporte a especulações de modo geral ininteligíveis e, quando inteligíveis, gritantemente implausíveis, a respeito da psique, da função da forma na arte e de todo e qualquer assunto que dê na telha de seus perpetradores.

Se por aqui alguma coisa mudar não será por efeito de algum processo de discussão (pois debater é coisa que nossa intelectualidade, rendida sem luta ao relativismo e à complacência, só faz "in extremis"), mas porque alguém reparará tardiamente que desconstruções, "textos", "pós-modernismos" e quejandos terão caído de moda. Será uma conversão como tantas outras por que passaram, sem nexo e sem razão.

Cláudio Weber Abramo é bacharel em matemática e mestre em filosofia da ciência. Foi editor de Economia da Folha e secretário-executivo de redação da "Gazeta Mercantil". É sócio da Weber Abramo, Penz Assessoria de Comunicação.

E-mail, wabpnz@ams.com.br

Agradeço a Alan Sokal a paciência de leituras e discussões progressivas em torno do presente artigo, do qual é, em essência, o verdadeiro autor (exceto quanto aos últimos parágrafos). Principalmente, agradeço a realização de uma antiga fantasia.

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# 9/15/1996 12:00:00 AM, Comentários, Links para esta postagem,