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TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE SUPREMO RECONHECE CRIME DE TORTURA


Em julgamento de 23/06, o STF, tomando decisão histórica, reconheceu a prática do crime de tortura no Brasil, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Policiais militares, em serviço no Estado de São Paulo, submeteram um adolescente, suspeito de ser autor de furto, às mais variadas agressões físicas, no intuito de obter uma confissão. Comprovadas extensas lesões corporais, no exame do corpo de delito, os responsáveis foram levados a julgamento.

Instauraram-se dois procedimentos: um na Justiça Militar, por

crime de lesão corporal (art. 209 do Código Penal Militar), e outro na Justiça comum, por tortura, com base no artigo 233 do ECA, que diz:

"Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilÍncia a tortura: pena reclusão de 1 a 5 anos."

Se da tortura resultar lesão corporal grave, a pena sobe para 2 a 8 anos; se gravíssima, 4 a 12 anos; se resultar a morte, 15 a 30 anos.

No caso em julgamento, as lesões foram classificadas como leves. Os acusados impetraram HC no STF por estarem sendo processados duas vezes pelos mesmos fatos (na Justiça comum e na Militar), o que consiste em frontal desrespeito ao princípio que veda a dupla punição penal pela prática de um só ato.

Durante a votação no Tribunal Pleno, questionou-se a constitucionalidade do artigo 233 do ECA, uma vez que a legislação não discrimina os diversos meios de execução da tortura nem define em que consiste sua prática. Prevaleceu, porém, por 6 votos a 5, o entendimento do relator, Ministro CELSO MELLO, de que o tipo penal em causa é passível de complementação pelo juiz, por serem diversas as formas de tortura, bem como diversos os seus resultados. Mas sua existência jurídica é inequívoca, em virtude de previsão expressa do ECA, confirmando-se sua constitucionalidade. O caso foi considerado de competência da Justiça comum.

Memorável o voto do Ministro CELSO MELLO:

"O Brasil, consciente da necessidade de prevenir e reprimir os atos caracterizadores da tortura, subscreveu, no plano externo, importantes documentos internacionais, de que destaco, por sua inquestionável importância, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 1984; a Convenção Interamericana para Previnir e Punir a Tortura, concluída em Cartagena em 1985, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da OEA em 1969. Estes atos internacionais já se acham incorporados ao plano do direito positivo interno e constituem, sob esse aspecto, instrumentos normativos que, podendo e devendo ser considerados pelas autoridades nacionais, fornecem subsídios relevantes para a adequada compreensão da noção típica do crime de tortura, ainda que em aplicação limitada, no que se refere ao objeto de sua incriminação, apenas às crianças e aos adolescentes."

O Código Penal brasileiro, ao qual estão sujeitos os maiores de 18 anos, não prevê o crime de tortura. Daí porque, até o presente momento, o crime de tortura só está reconhecido se praticado contra criança ou adolescente. De qualquer forma, o avanço representado por essa decisão do STF é significativo. A tortura é crime mais grave que mera lesão corporal e requer tratamento penal severo, exemplar. Por isso, a previsão expressa do delito no ECA, que é de 1990, corrige omissão do CP, que é de 1940, mas tem alcance limitado por proteger apenas os menores de 18 anos.

A democracia não pode tolerar a tortura. Se ela ocorreu du-

rante os regimes totalitários por que passou o Brasil, hoje essa prática é inadmissível e absolutamente condenável. A polícia deve pautar sua atuação na investigação acurada e competente dos vestígios do crime, não nas facilidades sádicas do espancamento. Há vários projetos de lei, tramitando no Congresso, que procuram definir o crime de tortura. Nenhum deles, porém, foi ainda transformado em lei. Seria importante que nossos parlamentares, seguindo a linha agora traçada pelo STF, apressassem a votação da matéria, aprovando normas que coíbam, de forma mais incisiva, as violações dos direitos humanos e da cidadania.


Luiza Nagib Eluf

Promotora de Justiça (SP), é secretária nacional dos Direitos da Cidadania, do Ministério da Justiça

(Publicada na RJ nº 216, pág. 31)