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TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE COMPETÊNCIA
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Tortura contra criança ou adolescente Tipo penal autônomo; 3. Conflito aparente de normas; 4. Crime hediondo; 5. Competência; 6. Atuação do Ministério Público; 7. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
CARLOS MAXIMILIANO, em sua monumental obra, Hermenêutica e Aplicação do Direito, deixou-nos a lapidar passagem: "O legislador não tira do nada, como se fora um DEUS; é apenas o órgão da consciência nacional. Fotografa, objetiva a idéia triunfante; não inventa, reproduz; não cria, espelha, concretiza, consigna" (1).
O direito, parte integrante de uma superestrutura ideológica, assenta-se em uma realidade subjacente, segundo a lição do saudoso baiano, o Professor ORLANDO GOMES (2).
A evolução da crise social no mundo, Brasil no meio, acaba por suscitar a iniciativa de medidas superestruturais, via de experiência legislativa, até que providências de natureza estruturais possam vir a ser concretizadas entre nós. Sintonizado com essa realidade emergente, o constituinte de 88, num esforço compreensivo e até elogiável entra em cena, inserindo no texto constitucional, artigo 5º, XLIII, recurso legislativo, exigente, porém, de complementação, que viria por lei ordinária, tudo na busca, que não é de nossos dias: a resposta mais severa e eficiente à criminalidade violenta crescente, destacando-se a previsão dos crimes violentos contra criança e adolescente, traduzida no artigo 233 da L. 8.069/90, de 13.07.90: "Submeter criança e adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilÍncia a tortura".
A escalada da violência contra menores em todo o território nacional explica, sociologicamente, a tomada de posição do legislador ordinário, amparado em permissivo constitucional, já referido. O Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei dos crimes hediondos vêm bem a propósito da realidade nacional.
A violência contra a criança e o adolescente, entre nós, conta,
em apreciável percentual, com a participação de integrantes da Polícia Militar. A deputada Cidinha Campos, do Rio de Janeiro, inclui até juízes nos grupos de extermínio.
2. TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE
Tramitam, no Congresso Nacional, várias iniciativas, colimando o cumprimento do disposto no artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal. Procura-se, nas Casas Legislativas, através de projetos, dotar o país do instrumental legislativo necessário à repressão da tortura, o que poderá encontrar viabilidade por meio da tipificação dessa prática ignominiosa.
A tortura, como tipo penal autônomo, não logrou acolhida no Código Penal. Aparece, sim, no referido diploma, na condição de circunstÍncia agravante genérica, incidente sobre a maioria dos tipos delitivos (art. 61, II, letra d, 4ª figura) e de qualificadora, qualificando o tipo penal homicídio (art. 121, 2º, III, 5ª modalidade). No Código Penal Militar (DL. nº 1.001, de 21.10.69) a situação é a mesma: a tortura surge na qualidade típica de agravante genérica (art. 70, II, letra e), bem como qualificadora no homicídio, através do recurso à cláusula exemplificativa, meio cruel (art. 205, 2º, III, penúltima parte).
Todavia, em lei especial, a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 233, temos, induvidosamente, o tipo penal tortura, assim construído: "Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilÍncia a tortura.
Pena reclusão de 01 (um) a 05 (cinco) anos".
O Ministro JOSÉ CELSO DE MELLO, em acórdão do Tribunal Pleno pontifica: "O crime de tortura, desde que praticado contra criança ou adolescente, constitui entidade delituosa autôno- ma, cuja previsão típica encontra fundamento jurídico no artigo 233 da Lei nº 8.069/90" (3). Continua o relator: "A norma escrita no artigo 233 da Lei 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, artigo 5º, XXXIX)".
Ainda que não abrangente de todas as situações fáticas, a tortura, sujeito passivo a criança ou o adolescente, está cunhada como tipo autônomo que, por ser um modelo tipológico aberto, poderá conter figuras penais outras, encontradas dispersas em nossa ordem jurídico-penal.
3. CONFLITO APARENTE DE NORMAS
A doutrina, na interpretação da lei Penal, demonstra a impossibilidade de conflito de normas penais, de tipos penais. Uma situação fática só é susceptível de um juízo valorativo. Um comportamento humano, se infração penal, será objeto de subsunção única. Consagra-se o princípio do ne bis idem. O conflito, conforme a preferência terminológica, portanto, é apenas aparente. O ordenamento jurídico é harmônico. A solução, fácil, vem pela aplicação de princípios, conforme o caso concreto que se quer equacionar.
DAMÁSIO E. DE JESUS, entre muitos autores, estuda bem os três princípios mais lembrados, na prática forense: princípio da especialidade, princípio da subsidiariedade e princípio da consunção (4).
O tipo penal tortura (art. 233 da Lei 8.069/90), por sua estrutura aberta, realiza-se, algumas vezes, mediante o concurso de outro tipo, a lesão corporal (art. 129, CP e 209, CPM), por exemplo.
Se a lesão corporal, por seu elemento teleológico, adquire corpo em razão da submissão de criança ou adolescente ao acusado, que a tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilÍncia, o tipo penal resultante é o da tortura.
O princípio da especialidade, segundo o qual lex specialis derogat generalis, indica a solução para a prevalência do tipo adequado, uma vez que o tipo (art. 233 da Lei 8.069/90) apresenta requisitos especializantes, ausentes na moldura da lesão corporal (art. 209, CPM). Submeter a criança ou o adolescente a tortura, por processos executórios, que configurariam, isoladamente, crime autônomo (art. 209, CPM), caracteriza o ilícito penal do artigo 233 da Lei 8.069/90. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem erige-se em crime, por meio do qual se consuma a tortura (art. 233 da Lei 8.069/90) contra a criança ou o adolescente, quando o elemento subjetivo, que impulsiona o agente, é submeter a vítima a tortura, se esta (criança ou adolescente) está sob sua autoridade, guarda ou vigilÍncia.
Prevalece, sem muita dificuldade exegética, a tipicidade fornecida pela Lei 8.069/90, artigo 233.
4. CRIME HEDIONDO
A prática de tortura contra criança ou adolescente, a pretexto de exercício de atividade policial, é assemelhada a crime hediondo e submete seu agente, Policial Militar, às conseqüências do artigo 2º da Lei 8.072/90.
Sobre a tortura contra preso, como qualificadora ou agravante genérica de outros tipos penais, não incidem as conseqüências de ordem material ou processual, do artigo 2º da Lei 8.072/90, porque a lei, injunção de mandamento constitucional (art. 5º, XLIII), não proporciona o supedÍneo requerido à moldura de um fato típico autônomo, abrangente de todas as hipóteses de tortura. O tipo penal tortura restringe seu alcance à proteção de criança e adolescente.
5. COMPETÊNCIA
Segundo a CF, artigo 125, § 4º, c/c o artigo 9º, I e II, CPM, a competência para o julgamento dos delitos previstos no CP e, simultaneamente, no CPM (arts. 129 e 209) é da Justiça Militar, desde que satisfeitos, no último caso, o disposto no artigo 9º, II, letras a, b, c, etc. São crimes militares impróprios, como preleciona MIRABETE, em seu Manual de Direito Penal (5).
A competência da Justiça Castrense, na conformidade da Lei Maior e do CPM recai, unicamente, em crimes previstos naquele código. Ausente previsão legal, o crime, ainda que realizado por Militar, no exercício de suas funções, refoge à competência da Justiça Militar. Há exemplos: o crime de abuso de autoridade (Lei 4.898/67), da responsabilidade de militar nas condições acima, tem seu julgamento deferido à Justiça comum, o mesmo se verificando em relação à tortura contra criança ou adolescente, praticada, embora, por militar em situação de serviço, uma vez que a figura penal mencionada não encontra tipicidade do Estatuto dos Militares.
Finalizando, oportuna é a citação de mais um trecho do julgado já invocado: "O crime de tortura contra criança e adolescente, cuja prática absorve os delitos de lesões corporais leves, submetese à competência da Justiça comum do Estado-membro, eis que esse ilícito penal, por não guardar correspondência típica com qualquer dos comportamentos previstos pelo CPM, refoge à esfera de atribuições da Justiça Militar estadual".
Praticada a tortura, crime fim contra criança ou adolescente, competente para o julgamento é a Justiça comum, mesmo que, ao materializar-se, tenha como meio executório tipo penal da competência da Justiça Militar. A lesão corporal, leve, grave, gravíssima e letal, crime meio, inserido no artigo 233 da Lei 8.069/90, é por este absorvido, firmando-se, conseqüentemente, a competência da jurisdição comum.
6. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Compete ao Ministério Público, como autor da ação penal e fiscal da lei, formular a acusação no juízo competente. Convencido da existência de vícios na relação processual, ainda que beneficiada a defesa, deve o MP argüí-la, decidiu o STF em acórdão, cuja ementa saiu publicada hoje (24.07.94), na coluna diária Direito e Justiça do jornal "O Popular", sob a responsabilidade dos jornalistas Luiz Otávio e Elvione Faria.
7. CONCLUSÕES
A) A tortura contra criança ou adolescente, praticada por militar, a pretexto de exercício de função policial, é crime comum, erigindo-se em tipo autônomo, à vista do disposto no art. 233 da Lei 8.069/90.
B) A tortura contra criança e adolescente, como tipo autônomo, assemelha-se a crime hediondo, sujeitando-se às regras do artigo 2º, da Lei 8.072/90.
C) A competência para o julgamento do crime acima, praticado mediante o emprego de violência, causadora de lesão corporal (art. 209, CPM) é da Jurisdição comum, à mingua de sua inserção no estatuto militar.
D) Cabendo ao MP formular em juízo a acusação criminal, segundo uma técnica que, a um tempo, assegure a validade dos processos e a possibilidade da ampla defesa, como escreve GUIDO ROQUE JACOB (6), toca à instituição, na busca de processo válido, pugnar pelo julgamento do autor do crime em apreço no juízo competente: a Justiça comum.
Geraldo Batista de Siqueira
Prof. de Direito Penal e Processual Penal Procurador de Justiça
Geraldo Batista de Siqueira Filho Advogado
(Publicada na RJ nº 216, pág. 26) BIBLIOGRAFIA
01. CARLOS MAXIMILIANO Hermenêutica e Aplicação do Direito, pág. 38.
02. ORLANDO GOMES A crise do Direito, pág. 05.
03. JOSÉ CELSO DE MELLO Ministro do STF, Relator do HC 70.389-5/SP.
04. DAMÁSIO E. DE JESUS Direito Penal 1/94.
05. JÚLIO FABBRINI MIRABETE Manual de Direito Penal 1/94.
06. GUIDO ROQUE JACOB Notas sobre a denúncia no Anteprojeto Justitia 76/95.