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PRESCRIÇÃO E REMISSÃO NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
1. INTRODUÇÃO
Os temas enfocados neste trabalho guardam relação com o Título III do Estatuto da Criança e do Adolescente (L. 8.069, de 13.07.1990), que cuida "Da Prática de Ato Infracional".
O adolescente, por inimputável, não comete crime ou contravenção penal, mas ato infracional, definido pelo legislador como "a conduta descrita como crime ou contravenção penal" (art. 103).
Logo, a conduta é a mesma. O que muda, apenas, é o
posicionamento da sociedade frente à essa conduta, posto que considera o adolescente imaturo para compreender toda a dimensão do ato praticado e, por isso, o repreende com menor rigor.
E não se diga que não existe uma repreensão, uma pena lato senso, em graus variados. As medidas sócio-educativas à que fica sujeito o inimputável por idade (art. 112) trazem, além do sentido de alinhamento social (como o próprio nome diz), uma reprimenda, um castigo, na medida que impõem ao infrator, na maioria das vezes, a prática de um comportamento em desacordo com sua vontade, v.g., terá que reparar o dano, prestar serviços à comunidade, ser internado, submeter-se a tratamento médico, freqüentar escola. E até mesmo, não raro, em desacordo com a vontade dos pais ou representantes legais do adolescente infrator que, quiçá premidos pela dificuldade econômica e sem assistência do poder público, incentivam pequenos delitos como forma de sobrevivência familiar.
O Judiciário, então, atua sobre a vontade do adolescente in-
frator, aplicando-lhe uma medida sócio-educativa, buscando fazêlo sentir a necessidade de adequação às normas de convívio social e de aprimoramento pessoal, para seu bem-estar presente e futuro Para que isso seja possível deve existir o devido processo legal, com contraditório e ampla defesa, conforme assegura o art.
5º, LIV e LV, da Carta Magna.
É aqui que se vai entrar, propriamente, nos temas pinçados.
2. PRESCRIÇÃO
O Judiciário representa o Estado no exercício do jus puniendi, no poder-dever de aplicar sanção ao praticante de conduta da qual deveria abster-se.
No caso do ato infracional poderia-se argumentar, de chofre, que a prescrição prevista para o direito de punir do Estado, nas ações criminais -, não poderia incidir, visto que não há pena nem punibilidade, a aplicação da medida sócio-educativa é facultativa (art. 112) e não há expressa previsão legal.
Não penso assim.
À uma, porque a medida sócio-educativa, já disse, tem seu aspecto de pena. Queira-se ou não denominá-la assim, trata-se de uma sanção, uma ordem imposta ao adolescente.
Para efeito de comparação a multa é um dos tipos de pena na legislação penal, porém existem medidas sócio-educativas de limitação e privação da liberdade do adolescente infrator (arts. 120 e 121).
Qual é, nesse caso, a mais grave? A pena ou a medida sócio-
educativa? Óbvio que a última. Ademais, há até penas-medidas iguais como a prestação de serviços à comunidade. Não deve prevalecer, pois, a simples nomenclatura, mas o Ímago da imposição estatal.
A medida sócio-educativa, pois, também é punitiva. Mesmo a pena por crime, é sabido e proclamado na Lei de Execução Penal, tem seu lado sócio-educativo: pune-se e tenta-se, com a punição, reeducar.
À duas, porque, no dizer de DAMÁSIO E. DE JESUS, in Prescrição Penal, 6ª ed., Ed. Saraiva, p. 3: "A punibilidade é conseqüência jurídica da prática do delito. Por tratar-se de efeito jurídico e não de elemento ou requisito do crime, sua ausência, salvo as exceções da anistia e da abolitio criminis, não apaga a infração penal.".
Vale dizer, transferindo a lição para a área da InfÍncia e Juventude, que a imposição de medida sócio-educativa é conseqüência jurídica da prática de ato infracional. E se há pena, no sentido amplo da medida sócio-educativa, existe punibilidade ou repreensão.
À três, porque o ato infracional nada mais é do que o crime, com todas suas características. O imputável que comete um crime pode deixar de sofrer a conseqüência jurídica de seu ato a pena se decorrido certo período de tempo previsto em lei. É a prescrição.
De acordo com DAMÁSIO E. DE JESUS (ob. cit., p. 22), a
prescrição tem tríplice fundamento: 1º o decurso do tempo (teoria do esquecimento do fato); 2º a correção do condenado; 3º a neglicência da autoridade.
Não pretendo discorrer longamente sobre cada um, bastando dizer que no primeiro presume-se desinteresse do Estado em punir autor de fato acontecido há muito tempo, no segundo que o infrator se emendou já que outro crime não cometeu e, no terceiro que a autoridade pública deve ser castigada pela demora na prestação jurisdicional.
Todos esses fundamentos servem ao ato infracional (crime em essência) e ao adolescente infrator, talvez com maior ênfase, porquanto a adolescência é a fase de constantes mudanças de comportamento e preparação definitiva da personalidade.
Por exemplo, o menino de 15 anos já pensa e age diferente de quando tinha 14 anos. Já freqüenta outros ambientes, tem novos amigos, ingressou no mercado de trabalho, etc.
Assim, a resposta judicial deve ser mais rápida para que, realmente, possa ter alguma serventia.
Se o Estado é lerdo e perde o direito de reprimir, face a prescrição, o maior de 18 anos imputável, em tese cidadão com todos os direitos individuais e sociais adquiridos (eleitor, elegível, liberdade de ir e vir, etc.), não há razão para que o mesmo deixe de acontecer em relação ao adolescente infrator.
Outrossim, não se pode acatar o argumento de que a prescrição não incida exatamente para que se corte o mal na raiz, para que o adolescente não se torne um adulto infrator. Isso é só uma probabilidade, além do que o adolescente deve ser tratado com mais complacência que o adulto, nunca com mais rigor.
Enfim, é justo que o Estado tenha um prazo para formar a culpa e aplicar a sanção, para que esta encontre o adolescente ao menos próximo da situação vivida quando da prática do ato infracional.
À quatro, porque a faculdade em aplicar a medida sócioeducativa não quer dizer arbítrio. As decisões judiciais devem ser fundamentadas. Reconhecendo o ato infracional o juiz só não aplicará a medida se conceder remissão ao adolescente (par. único, artigo 126).
Via de regra, portanto, instruído o processo e convencendo-
se da autoria e materialidade da infração deve o juiz aplicar a medida sócio-educativa melhor adequada ao caso.
Caso contrário estaria desvirtuando a vontade do legislador, que é de dar uma resposta ao adolescente infrator. Só há duas alternativas, se presente a culpabilidade: aplicar uma das medidas ou perdoar o infrator.
À cinco e por último, porque o procedimento para a aplicação de medida sócio-educativa é em tudo semelhante ao processo criminal: iniciativa do MP (art. 182), cientificação da acusação (art. 184, § 1º), interrogatório (art. 186), defesa prévia (art. 186, § 3º), instrução e julgamento (art. 186, § 4º), alegações e sentença.
O que se apura é a mesma coisa: ato definido como crime. Só
muda a possibilidade de conceder remissão. Embora a L. 8.069/90 (ECA), não tenha previsto a incidência da prescrição, também não vedou, mostrando-se, à meu ver, de todo pertinente o emprego da analogia.
O prazo prescricional deve ser igual ao previsto na lei penal, reduzido à metade em face da idade do adolescente, como ocorre com os que praticam crime antes de completar 21 anos.
3. REMISSÃO
A remissão pode ser concedida antes de oferecida a representação contra o adolescente infrator ou mesmo no curso do procedimento para aplicação de medida sócio-educativa.
No primeiro passo a iniciativa é do Ministério Público (arts. 126 e 180, II). No segundo, pode ser do Órgão Ministerial ou do Juiz da InfÍncia e Juventude (art. 186, § 1º, e artigo 188). Só produz efeitos com a decisão judicial, extinguindo ou suspendendo o processo.
Consiste no perdão ao adolescente, quando verificado que ele, por si mesmo, emendou-se, dando mostras que não mais irá cometer infrações. É muito utilizada nos casos de menor gravidade, como por exemplo de adolescente surpreendido, pela primeira vez, dirigindo veículo automotor em via pública.
Até aí nenhuma novidade. Acontece que essa remissão pode ser acompanhada da aplicação de medidas sócio-educativas, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação (art. 127).
Para que essa medida seja revista judicialmente, é preciso pedido expresso do adolescente ou seu representante legal ou do Ministério Público (art. 128).
É nisso que vislumbro violação aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Ora, apesar da lei dizer que a remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, não há como negar que quando ela se faz acompanhar da aplicação de medida sócio-educativa o Promotor de Justiça e o Juiz da InfÍncia e Juventude extrairam do conjunto probatório até então recolhido que o adolescente merece uma reprimenda, isto é, alguma culpa tem. Caso contrário, não receberia qualquer medida.
O liame entre o ato praticado pelo adolescente, em tese tido como infracional, e a medida sócio-educativa que acompanhou a remissão é óbvio. Tanto que a decisão judicial é dada nos autos de apuração de ato infracional (art. 179), formado à partir da informação (auto de apreensão, boletim de ocorrência, relatório policial) de sua prática.
Há, portanto, um juízo de culpa formado, apenas não formalmente revelado por imposição legal. Não se esquece que na maioria dos casos em que a medida sócio-educativa acompanha a remissão dá-se quando o adolescente confessa, na oitiva informal com o representante do Ministério Público, o cometimento do ato infracional.
Quase sempre a confissão não padece de vícios, mas deve-se ter em mente que o adolescente é incapaz e os pais quase nunca sabem da prática infracional. Logo, se a sua confissão não estiver acompanhada de outras provas seguras sobre a autoria, me parece precipitada a atentatória à garantia do contraditório a imposição de cumprimento de medida sócio-educativa, baseada, como disse, nesse juízo velado de culpabilidade. É que o objetivo do procedimento iniciado com a representação do MP (art. 182) é, justamente, impor ao adolescente infrator uma medida sócio-educativa.
Só que, então, será observado o contraditório e a ampla defesa. A sentença, para aplicar a medida analisará a prova elencada de parte à parte. Concluindo pela culpabilidade, ensejará direito de recurso ao adolescente.
Já na remissão combinada com medida sócio-educativa a revisão da decisão, embora possível, será feita pelo mesmo juízo, francamente com menores chances de reforma e, possivelmente, sem que o adolescente possa usar de todos os meios para provar o erro na aplicação da reprimenda sócio-educativa.
A inserção em regime de semiliberdade e internação em esta-
belecimento educacional, mesmo quando o adolescente responde o processo, são pouco usadas. Principalmente ante a deficiência das casas que se prestam ao serviço.
O membro do Ministério Público paranaense, OLYMPIO SOTTO MAIOR, na obra Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Malheiros Editores, p. 340, assinala: A internação é a medida sócio-educativa com as piores condições para produzir resultados positivos. Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes internados acabem ainda mais distantes da possibilidade de um desenvolvimento sadio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do cotidiano), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem absorvendo a chamada "identidade do infrator", passando a se reconhecerem, sim, como de "má índole", natureza perversa, alta periculosidade", enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinqüência ("os irrecuperáveis", como dizem eles).
As outras medidas, assim, são as mais aplicadas. Corre-se o risco, então, de cair na tentação de aplicá-las sem o devido processo legal, tornando praxe a exceção de combiná-las à remissão.
A medida sócio-educativa é imposição estatal, como disse linhas atrás, bem assim atua sobre a vontade do adolescente. Ele é obrigado, coagido. Deve cumprir o que foi determinado, mesmo que não queira. Por isso não se deve abusar da remissão-punitivaeducativa. O próprio Estatuto assegura ao adolescente várias garantias, alinhavando-as, entre outras (art. 111), como: pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional; igualdade na relação processual; produção de provas necessárias à sua defesa; defesa técnica por advogado; direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; direito de solicitar a presença de seus pais.
Entendo, portanto, que caso pretenda-se acoplar à remissão a imposição de uma medida sócio-educativa mister se faz que exista uma renúncia ao direito de defesa por parte do adolescente, logicamente acompanhado por concordÍncia dos pais ou responsável, consubstanciada na aceitação prévia da medida a ser aplicada.
Não vale a assertiva apenas para a advertência (art. 115), que é ato dependente apenas da autoridade judiciária. Pode-se dizer, grosso modo, tratar-se de um pito ou sabão passado no adolescente.
Se o adolescente entender que não merece receber medida sócio-educativa, deve-se-lhe oportunizar direito de defesa, o contraditório, pelo qual buscará demonstrar qualquer causa de exclusão de responsabilidade (art. 189) ou mesmo que não precisa da intervenção estatal para corrigir-se, merecendo, isto sim, remissão pura e simples.
Encerrando, nos casos de remissão com medida sócioeducativa antes de iniciado o procedimento deve o MP instruir a concessão com declaração formal do adolescente e seus pais ou responsáveis aceitando a medida, e nos casos de concessão no curso do procedimento deve ser lavrado termo neste sentido.
4. CONCLUSÕES
Pelo exposto, afirmo o seguinte:
a prescrição pode ser reconhecida nos procedimentos para aplicação de medida sócio-educativa contra adolescente praticante de ato infracional, em analogia com a lei penal;
a remissão só pode ser acompanhada de medida sócioeducativa tirante a advertência se o adolescente previamente concordar em cumprir esta, renunciando ao seu direito de defesa, assegurado na Constituição Federal e no ECA. Rosaldo Elias Pacagnan
Juiz de Direito em Palotina-PR (Publicada na RJ nº 211, pág. 22)