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Artigo 1° e 2°

(JTJ Volume 179 Página 100)


MENOR Guarda Criança indígena Competência da Justiça Comum Estadual e não da Justiça Federal Interpretação dos artigos 109, inciso XI, da Constituição da República, e 1º e 2º da Lei Federal n. 8.069, de 1990 Irrelevância, ademais, da intervenção da FUNAI Recurso não provido.


MENOR Guarda Criança indígena Deferimento, tendo em vista o estado de saúde do infante e das péssimas condições de sua comunidade Prevalência, ademais, da conservação da vida sobre a preservação dos costumes indígenas Recurso não provido.


Apelação Cível n. 28.250-0. ACÓRDÃO

Ementas oficiais:


Menor Pedido de guarda envolvendo criança indígena Competência da Justiça Comum Estadual Inteligência do disposto no inciso XI do artigo 109 da Constituição da República Intervenção da FUNAI no feito, que não se constitui em causa de deslocamento da competência originária.


Menor Pedido de guarda Condições pessoais da criança, aliadas à situação de sua comunidade de origem que recomendavam, mesmo, o deferimento da guarda postulada Recursos improvidos.


ACORDAM, em Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, rejeitada a matéria preliminar, negar provimento aos recursos, de conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Yussef Cahali (Presidente) e Ney Almada.


São Paulo, 30 de novembro de 1995. DIRCEU DE MELLO, Relator. VOTO

Perante o douto Juízo de Direito de Ubatuba, os apelados deduziram pedido de guarda da criança A. S., integrante de comunidade indígena. Ao cabo do procedimento, a douta Magistrada determinou a permanência da criança sob a responsabilidade dos recorridos, até que sua aldeia possa lhe oferecer condições mínimas de sobrevivência.


Apelam, a Comunidade Indígena Guarani e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sustentando, ambas, a incompetência absoluta da Justiça Comum Estadual, por tratar-se de matéria afeta à Justiça Federal. No mérito, pleiteiam o imediato retorno do infante ao seu habitat. Processado o apelo e mantida, implicitamente, a respeitável decisão impugnada, subiram os autos.


A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça pediu o desacolhimento da preliminar e, no mérito, inclinou-se pelo provimento parcial do apelo.


Manifestou-se, espontaneamente, o Ministério Público Federal, que foi admitido no feito, pelo respeitável despacho de fls. 304.


Esse o relatório.


1. O caso versa peculiaridade.


Cuida-se de pedido de guarda envolvendo integrante de comunidade indígena. Bem por isso, os apelantes e o Ministério Público Federal defendem a incompetência da Justiça Comum Estadual para o exame da questão, que seria da alçada da Justiça Federal, por força do que dispõe, especialmente, o inciso XI do artigo 109 da Constituição da República.


Sem razão, contudo.


O texto constitucional, quando se refere à disputa sobre direitos indígenas (artigo 109, inciso XI) e à legitimação para agir (artigo 232), quer significar os litígios de interesse de toda a comunidade aborígine e voltados, pelos menos preponderantemente, para a questão do uso e ocupação da terra. É o que se extrai da doutrina a respeito (cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", Editora Revista dos Tribunais, 7ª ed., 1991, págs. 714/722; PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vol. 7º/452, Editora Saraiva, 1995; J. CRETELLA JR., "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. VIII/4.552-4.570, Editora Forense Universitária, 1993 e SOLANGE RITA MARCZYNSKI, "Índios Temas Polêmicos", "Revista de Direito Civil", "RT", vol. 54/69-70).


Por outro lado, a Lei Federal n. 8.069, de 1990, é clara ao estabelecer, no seu artigo 146, que "a autoridade a que se refere esta lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o Juiz que exerce essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local".


Esse dispositivo não afronta a Constituição, porque não há, no texto maior, qualquer disposição em sentido contrário.


Dessarte, guarda, tutela, adoção, apuração de ato infracional e outras matérias, são de competência exclusiva do Juiz da Infância e da Juventude, que integra a Magistratura Comum Estadual, independentemente da etnia da criança ou do adolescente.


A propósito, os artigos 1º e 2º da lei de regência não fazem qualquer distinção entre o índio e o não-índio. A lei estende sua proteção integral a toda criança e adolescente. Qualquer distinção nesse campo representaria, por certo, odiosa discriminação. Afinal, por princípio, sob o ponto de vista jurídico-formal, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (Constituição da República, artigo 5º, caput).


Não há que se falar, também, em deslocamento da competência porque a União, por intermédio da FUNAI, passou a intervir no feito, na qualidade de parte. A União ou a FUNAI não assumiu o pólo passivo da relação processual, pela simples razão de que não há processo, senão apenas procedimento, verificatório, a teor do que dispõe o artigo 153 da Lei Federal n. 8.069, de 1990, que visa à aplicação como se fez de uma das medidas de proteção de que trata o artigo 101 daquele texto.


A competência é, pois, da Justiça Comum Estadual.


2. O procedimento verificatório teve início em março de 1993, porque o pequeno A., então com três anos de idade, encontrava-se internado na Santa Casa de Misericórdia de ..., havia dois meses, com quadro de tuberculose pulmonar, desnutrição grave e apresentando risco iminente de vida. O próprio médico da irmandade recomendou abrigamento do infante, dadas as diversas recidivas de tuberculose pulmonar (cf. fls. 3 do apenso).


Ante esse quadro de inegável e profunda gravidade, os recorridos postularam e obtiveram, em maio daquele ano, a guarda da criança.


O detalhado relatório de fls. 72, confirmado no depoimento de fls. 171-172, é verdadeiramente impressionante. Demonstra que A. era vítima de negligência severa. Suas sucessivas internações evidenciavam falta de atenção primária à saúde: alimentação, higiene, aplicações de medicamentos, etc. O retorno do paciente às precárias condições de assistência certamente o levariam ao óbito. O relato e o testemunho são confirmados pelo relatório de fls. 215, onde dois médicos afirmam que em março de 1992, em uma cobertura de foco na Aldeia ..., A. foi encontrado em péssimas condições higiênicas, nutricionais e respiratórias, e compartilhava um biscoito de farinha de mandioca, no chão, com um cachorro com sarna.


Em função dos cuidados que recebeu dos guardiães, A. recuperou-se da tuberculose, embora contine exigindo cuidados médicos, por ser portador de bronquite alérgica. Integrou-se ao lar substituto, sem contudo perder de vista suas raízes sócio-culturais, dados os contatos que os guardiães lhe possibilitam com seus pares. Mas A. é enfático ao afirmar que não deseja retornar para a aldeia (cf. fls. 161/163 e 171-172), que não gostaria de voltar a viver na aldeia (cf. fls. 224).


Apurou-se, de outro lado, que a genitora do infante (seu genitor está em local ignorado), e seus pares vivem em condições subumanas, com gatos e cachorros dividindo o mesmo espaço com os moradores do local, que sobrevivem do artesanato. Observou o estudo social realizado que na casa da genitora do infante, o único alimento disponível eram os pães enviados pelos guardiães (cf. fls. 186/189).


Esse estado de coisas, bem se vê, choca-se de frente com a afirmação da FUNAI, às fls. 212, no sentido de que a Fundação Nacional da Saúde presta àquela comunidade indígena todo tipo de assistência, não deixando faltar medicamentos ou qualquer outro tipo de ajuda aos silvícolas do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro... (sem destaques no original).


Não se trata, apenas, de diferenças de costumes, como pretende a FUNAI. A comunidade de origem do pequeno A., se não vive como branco, também não vive como índio. O verdadeiro clã aborígine sempre foi auto-suficiente: plantava, pescava e caçava para o seu sustento. A situação da aldeia de A. é bem outra. Nada tem a ver com os costumes, hábitos e habitat do povo indígena.


Daí a razão do desacolhimento dos apelos: a comunidade de origem de A., dada sua particular situação de saúde, não tem condições de lhe emprestar os cuidados mínimos, básicos, elementares, para lhe assegurar, antes de mais nada, o direito à vida, que lhe é garantido pelo caput do artigo 5º da Constituição da República.


Como bem colocado pela Doutora Juíza de Direito, não restam dúvidas que é preferível sacrificar a preservação dos costumes indígenas para a conservação da vida do índio, que antes de tudo é um ser humano.


A proposta da douta Procuradoria-Geral de Justiça não atenderia aos superiores interesses da criança, que precisa ser mantida a resguardo de recaída em seu estado de saúde.


Bem agiu, portanto, a douta Magistrada, ao manter o infante com seus guardiães, até que sua comunidade reúna condições de novamente recebê-lo. E enquanto essas condições não se verificarem, A. continuará a manter contado com os seus, assim se preservando, na medida do possível, suas nobres raízes.


3. Diante do exposto, superada a preliminar de incompetência da Justiça Comum Estadual,

nega-se provimento aos apelos.