Lopus
E o dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, com minha primitiva e arredia maneira de ser; trabalhara algumas horas a compulsar velhos códigos e sentira dores durante duas horas seguidas, como os velhos costumam sentir; engolira uns comprimidos e me alegrara porque as dores se haviam deixado enganar; metera-me num banho quente e absorvera o agradável calor; recebe-ra três vezes o correio eletrônico e correra a vista pelos spam e mensagens sem importância; fizera meus exercícios respiratórios, mas achara conveniente transferir para outro dia os exercícios mentais; dera um passeio de uma hora e vira, recortados contra o céu, delicadas e belas amostras de cirros preciosos... agradável, assim como ler os livros antigos ou demorar-me no banho quente,... mas, afinal de contas, não fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão somente um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de alguém velho e descontente, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta de que se não seria o melhor momento para o suicídio era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia... quem havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque, das bebedeiras sem fim, transformando a alegria de viver num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de shopping center e nos atormenta com uma persistência emética, e quando tudo está concentrado e levado ao climax do insuportável dentro de nosso próprio ser enfermo — quem já havia passado por aqueles dias infernais mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se sentava agradecido junto ao micro a ler notícias eletrônicas, verificando a indiferença quanto às novas guerras e aos nauseantes escândalos no mundo da política, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranquilo semideus, um tanto anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semideus um tanto encanecido que cantava o salmo incolor pareciam gêmeos... muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés... mas o pior de tudo e que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar... após um curto instante parece-me odioso e repugnante... então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor... quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido... arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um portal ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras,... pois o que eu odiava mais profundamente e mais maldizia era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado... nesse estado de espírito, portanto, havia atravessado mais um dia vulgar e tolerável, quando chegou a noite....
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