Bachelard, Rimbaud, Nietzsche, Lewis Carrol, o penetra Baudelaire e muitos outros, todos sentados em volta da mesma távola, arrancando nacos de carne macia e comendo com mingau. Bachelard está sentado com um pouco mais de distância, e ri com serenidade.

_Certo. Posso ouvir seu riso. Achas que se dirige a ti?
_A mim, diretamente, não. Às Condições de um contexto patético.
_Uma colocação retórica.
_Claro que é, se não fosse, em que classificação retórica alternativa isto se
enquadraria?
_Moldas tua face com a mesma argila de Sócrates, embora exiba a perícia de uma
criança analfabeta. Derrubas as construções alheias enquanto tu próprio não tens
nada a oferecer que não seja as ruínas do que demoliu.

Por outro lado, há a denotação de que esta é a síntese de todo o desenvolvimento intelectual da história do Homem. As positivações feitas de equívocos dogmatizados, seguida de uma revisita corretora até que se apague com o tempo toda a verdade até então construída. Em prol do recomeço do sistema (que Orobobo muito bem tecido!

Do tamanho de todas as bibliotecas do mundo: milhares de Alexandrias, sua perda e retomada sistemáticas).

Os números zero e um, agora em mil novecentos e noventa e nove, são os códigos que se escreve mais rápido. Temos de nos ocupar, formigas cerebrais. Nas imagens de Bachelard, os universos diurno e noturno se desenvolveram paralelamente.

Binariamente.

O pensamento sempre oscilou entre essas duas possibilidades paradigmáticas opostas e complementares: a de exteriorizar o mais exatamente possível sua representação pessoal do universo, a imaginação simbólica, ou por de lado sua percepção pessoal em função das convenções necessárias à comunicação, à participação e à identidade do seu grupo em torno de uma representação coletiva da realidade, a representação sígnica. O pensamento binário que emana do novo homem, o homem ciborgue, horrendo híbrido do homem lobotomizado e as máquinas do capitalismo. Que brilhante idéia! Dessa vez, não podemos quebrar as máquinas, pois elas somos nós.

Não é Bachelard que desenvolve a idéia de que o instante poético é uma “relação harmônica entre dois contrários”? Heis o caos do homem e a lógica da máquina. Misturamos os dois e temos o homem ciborgue.

E é nesse cenário que a arte de Rimbaud se encontra perdida, num universo frio e binário desse final de milênio. Anacronismo? Não, pois não acredito em um tempo. Acredito, sim, que há um modismo não salutar que mistura o humano com a máquina, e retira-lhe o que o torna verdadeiramente humano e artístico: o erro, a imperfeição, o pútrido. O contrário disso é a perfeição plástica, destituida necessariamente de mensagens, como são os grandes tele jornais nacionais.

O tempo do corpo é um; como poderíamos nos defrontar diante o tédio? Quem nos explicaria a razão de estamos de forma constante e ritmada cercados em celas duras de concreto, pretendendo experimentar o mundo através de uma tela de areia polida que brilha? Se todos os corpos humanos fossem desfilar fora de suas casas, seu corpo moldado pela inércia - que espetáculo! Um congestionamento irresistível.

Alisando com a leveza de uma amante esta visão preciosa, temos uma postulação, que emerge do leite suave de tal rosa: vivemos para nos mantermos imóveis, entre os dois momentos que necessariamente temos de espender cuidando das funções fisiológicas e cumprindo o que nos toca para que sempre seja assim.

_Volta e meia acontecem coisas nessa vida tão fechada em sua pré programação. Os dramas, as tragédias pessoais. Frentes a estes abismos vemos a dimensão oculta na vida comum. Pois, se não há profundidade nos cânones, por que motivo ela está (é) ali? Encrustrada em nós, consumindo carne demais, pervertendo a grande economia universal. Denotando, e fazendo-nos gargalhar chorando como loucos! _É indispensável que se resolva esse paradoxo.

_Tens medo?
_Não, pavor. Quero saber qual das mortes é menos amarga. E, se, afinal, me apraz o
assassino.
_O quê?
_O peso. É praticamente um fratricídio em primeiro grau.
_Estenda-se no assunto, por favor.
_Uma vez ouvi as considerações de um homem sobre a inexistência da obrigação:
sempre é possível assassinar-se!
_Com ressalvas. Pois bem. E se, a priori, somente as possibilidades em vida me
forem convenientes?

Cabe à consciência subjetiva a escolha de sentido para a própria existência. Até então, o que foi feito limitou-se em recortar-se e cozendo retalhos de dogmas institucionais. Estes não se confrontam, mas se locupletam evitando o silêncio. Reflexivo, Franscis Bacon já alertava sobre a impossibilidade de transpor o discurso científico para o terreno cotidiano, sob a pena da incapacidade comunicacional, e por conseguinte, lógica.

O indivíduo natimorto viu-se ambulando pelas ruas, com todas as permissões que pudesse articular, e obviamente não articulou. Olhou o seu rosto longamente, do espelho d’água romana ao da parede do café francês, e pôde até contemplar alguns pictogramas bem mais antigos. O insight cansado: não se pode ser cético todo o tempo. A recusa da sitemática de chavões desce a mente humana ao caos primordial. O conhecimento ao qual temos disposição foi uma ordem assentada por milênios e milhares. São precisos dois para a dialética e linguagem... Não se desvela, dessa forma, o embuste do sujeito?

Terminações em vidro é o que temos. Nervos em cujas pontas se refratam as cons-truções exteriores. Por dentro, a transparência natural da matéria. Suporte neutro de abstrações. Os cotos deslizam por sobre as superfícies e sentem as texturas me-morizadas do ideal, antes das vilosidades comuns. Raramente poesia; um estalo. Rachaduras incongruentes com os monumentos ao perfeito encaixe. Mas isto são choques térmicos, chamados de revoluções, por falta de outra palavra menos triste.

Bachelard descobriu na aparente contradição entre o sígnico e o simbólico um vali-oso método de interpretação dialógica: alternar o estudo científico dos signos com a imaginação criativa, a meditação sobre o conteúdo simbólico da linguagem. Temos, assim, duas faces da produção intelectual: a ‘diurna’ da exigência de objetividade do pensamento lógico; e a ‘noturna’, onde a subjetividade mergulha no inconsciente.

Dessa forma, por um lado, o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão, e, por outro, é a intuição e a imaginação criativa que são como alimentos que renovam a atividade crítica do pensamento. Alguns cientistas atuais identificam essas duas facetas da atividade mental como um produto direto do funcionamento dos dois hemisférios cerebrais, onde o lado esquerdo desenvolve o simbólico-afetivo e o direito, o lógico-racional.

Imensidão, jardins selvagens “à inglesa”, contrastes bruscos, aridez da seca e das queimadas, exuberância de brotos e flores após as queimadas, colinas sinuosas, águas cristalinas, veredas, a verticalidade dos buritizais em contraposição aos vas-tos horizontes, pedras lisas erodidas pelos ventos e pelas águas, aspereza de folhas grossas como couro, crepúsculos vermelhos como a poeira adstringente que tudo cobre, monotonia de uma paisagem que se estende tanto que quase perde seu en-canto.

O olhar aventureiro e admirado do estrangeiro projeta seus referenciais cul-turais sobre estes ermos exóticos, incorporados ao seu repertório, leva-nos aos rudi-mentos de uma visualidade do sertão, lugar de contrastes variados paradoxalmente repetitivos. Estamos, então, em condições de ver como, entre esses jardins selva-gens e casuais, podem-se encontrar as estruturas de um olhar, de uma visualidade do deserto.

Segundo Bachelard, “a cabana do eremita é uma glória da pobreza. De despojamento em despojamento ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio”. Esse jorro de metáforas nos leva às considerações de que, para ele, a “consciência da imensidade faz do escritor romântico um herói da contemplação. Por sua "mise-en-scène", ele faz trabalhar uma imaginação do excesso. Esta imaginação vai entrar, por este excesso, em comunicação com a terra imensa. “Se substituíssemos, nessa citação, o termo de escritor pelo de artista plástico, ou simplesmente pelo de espectador, teríamos, então, diante de nós, alguém vivenciando sensações de “onirismo panorâmico” que correspondem à “contemplação da paisagem cuja pro-fundidade e extensão parecem chamar pelos devaneios do ilimitado”.