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Artigo 4°

(JSTJ e TRF Volume 86 Página 149)


RECURSO ESPECIAL N. 63.128-9 GO (95.0015132-4)


Sexta Turma (DJ, 20.05.1996)


Relator: Exmo. Sr. Ministro Adhemar Maciel Recorrente: Ministério Público do Estado de Goiás Recorrido: Estado de Goiás Advogados: Drs. Maria José Perillo Fleury e outros e Getúlio Vargas de Castro e outros


EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E PROGRAMÁTICA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA OBRIGAR O GOVERNO GOIANO A CONSTRUIR UM CENTRO DE RECUPERAÇÃO E TRIAGEM. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.


I O Ministério Público do Estado de Goiás, com base nas Constituições Federal e Estadual e no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente ajuizou ação civil pública para compelir o Governo Estadual a construir um Centro de Recuperação e Triagem, em face de prioridade genericamente estabelecida. O TJGO, em apelação, decretou a carência da ação por impossibilidade jurídica.


II A Constituição Federal e em suas águas a Constituição do Estado de Goiás são "dirigentes" e "programáticas". Têm, no particular, preceitos impositivos para o Legislativo (elaborar leis infraconstitucionais de acordo com as "tarefas" e "programas" preestabelecidos) e para o Judiciário ("atualização constitucional"). Mas, no caso dos autos as normas invocadas não estabelecem, de modo concreto, a obrigação do Executivo de construir no momento, o Centro. Assim, haveria uma intromissão indébita do Poder Judiciário no Executivo, único em condições de escolher o momento oportuno e conveniente para a execução da obra reclamada.


III Recurso especial não conhecido. Decisão recorrida mantida.


ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas:


Decide a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade negar provimento ao recurso nos termos do voto do Sr. Ministro Relator na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Votaram de acordo os Srs. Ministros William Patterson, Luiz Vicente Cernicchiaro, Anselmo Santiago e Vicente Leal.


Custas, como de lei.


Brasília, 11 de março de 1996 (data do julgamento). Ministro ADHEMAR MACIEL, Presidente e Relator. RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO ADHEMAR MACIEL: Tratase de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Goiás, com arrimo no artigo 105, III, a e b, da Constituição Federal contra acórdão proferido pela Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.


O recorrente, por intermédio do Núcleo da Infância e da Juventude, propôs ação civil pública para compelir o Estado de Goiás a determinar a construção de estabelecimento educacional para o acolhimento de adolescentes que venham a receber a aplicação de medida sócio-educativa de internamento. Julgada procedente em parte, foi a decisão cassada em grau de apelação, cujo acórdão registrou a carência de ação, por falta de possibilidade jurídica do pedido. 3. Alega o recorrente que a decisão guerreada contrariou o artigo 4º da Lei n. 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente -

, e convalidou ato omissivo do governo local contestado tanto em face da referida lei quanto em face da Constituição Estadual. 4. O recurso foi admitido com fundamento na alínea b do permissivo constitucional.


5. O Ministério Público Federal, em parecer do Dr. WÁGNER DE CASTRO MATHIAS NETTO, opinou pelo provimento do recurso. Não cabe alegação de falta de recurso orçamentário. Além disso, determinação judicial objetivando adequar prioridade que deveria ser concedida pelo Estado ao menor é juridicamente possível. Não há interferência no poder discricionário estatal, devendo este ser entendido como o poder outorgado ao agente público para atuar dentro do âmbito demarcado pela regra jurídica.


É o relatório. VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO ADHEMAR MACIEL

(Relator): O especial se faz pelas alíneas a e b do permissivo constitucional. O recorrente transcreve o artigo 171 da Constituição do Estado de Goiás:


"O Estado e os Municípios assegurarão à criança e adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à moradia, ao lazer, à proteção no trabalho, à cultura, à convivência familiar e comunitária, nos termos da Constituição da República, compreendendo: I :


:


IV aquinhoamento privilegiado de recursos públicos, para os programas de atendimento de direitos e proteção especial da criança e do adolescente".


O artigo "supra", não é preciso muito esforço ou acuidade para perceber, se modelou bem de perto no artigo 227 da Constituição Federal ("Da Família, da Criança, do Adolescente e do Ido- so").


O artigo 4º da Lei n. 8.069/90, também transcrito pelo recorrente, dispõe:


"É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.


Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) :

:


c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;


d) distinção privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude". Infelizmente, o recurso não tem como ser provido. Todavia, não posso furtar-me à transcrição de uma nota de admiração pela recorrente, a Promotora de Justiça MARIA JOSÉ PERILLO FLEURY, por seu idealismo, e porque não dizer, "posicionamento vanguardeiro em relação ao nosso atual estágio político-jurídico". Explico-me:


A nossa Constituição de 1988, mais do que todas as Cartas e Constituições brasileiras anteriores, é "dirigente" ("dirigierende Verfassung") e "programática" ("programmatische Verfassung"). Ela almeja "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais" ("id.", III). Em outras palavras, um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa é oferecer "diretivas modeladoras" para a própria Sociedade, acenando com a intervenção do Poder Público na "ordem econômica", "financeira", "cultural" e "ambiental". Essas normas programáticas se destinam especialmente aos Poderes Públicos. Ao Legislativo, para que ele procure elaborar as normas infraconstitucionais consoante os "programas" e "tarefas" gizados pela Constituição. Ao Judiciário, para que ele igualmente exerça a denominada "atualização constitucional" ("Verfassungsaktualisierung"), ou seja, interprete as leis tal qual preceituado na Constituição. Acontece que no caso dos autos as normas maiores não estabeleceram, de modo concreto, a escalada de prioridade. Assim, não se tem como obrigar o Executivo a construir o Centro de Recuperação e Triagem para a recepção de adolescentes submetidos ao regime compulsório de internamento. Haveria uma verdadeira intrusão do Judiciário no Executivo. O Relator "a quo", o eminente Desembargador NOÉ GONÇALVES FERREIRA, bem apreendeu em seu voto:


"Analisando o caso sob enfoque nestes autos em face do estudo ora reproduzido, tem-se, sem dúvida, que a sentença vergastada impôs ao Poder Executivo Estadual obrigação de executar obra inserida na sua discricionariedade, o que evidentemente, não é possível.


Sim, porque o Executivo, constitucionalmente autônomo, goza de total liberdade para eleger as obras prioritárias a serem construídas".


Ainda que escrito há mais de meio século e na França, onde o figurino constitucional é diferente do brasileiro, vale a pena transcrever palavras de Maurice Hauriou em seu "Précis Élémentaire de Droit Administratif" (Librairie du Recueill Sirey, 1938, p. 229):


"A administração não é animada, naquilo que ela faz, por uma vontade interior, mas, sim, por vontade executiva livre submetida à lei como um poder exterior. Segue-se que, de um lado, nas matérias de sua competência, enquanto seu poder não está ligado por disposições legais, ele é inteiramente autônomo e, por outro lado, nas matérias em que seu poder parece ligado pela lei, ele se conforma sempre a uma certa escolha de meios que lhe permite de se conformar voluntariamente à lei.


Esta faculdade de se conformar voluntariamente à lei é tanto mais reservada à administração das leis quanto ela goza constitucionalmente de uma certa liberdade na escolha dos momentos e das circunstâncias em que assegura esta aplicação.


Conforme este ponto de vista, convém mostrar novamente que o poder discricionário da administração consiste na faculdade de apreciar a "oportunidade" que pode ter de tomar ou não tomar uma decisão executória, ou de não torná-la imediatamente, que seja prescrita pela lei".


Ou no original:


"L'administration n'est pas animée, dans ce qu'elle fait, d'une volonté intérieure légale; elle est animée d'une volunté exécutive libre assujettie à la loi comme à un pouvoir extérieur. Il suit de là, d'une part, que, dans les matières de sa compétence, lorque son pouvoir n'est pas lié par des dispositions légales, il est entierement autonome, et, d'autre parte, que, dans les matières où son pouvoir paraît lié par la loi, il lui se conforme toujours à un certain choix des moyens qui lui permet de se conformer volontairement à la loi.


Cette faculté de se conformer volontairement à la loi est d'autant plus réservée à l'administration des lois et qu'elle jouit constitutionnellement d'une certaine latitude dans le choix des moments et des circonstances où elle assure cette application.


A ce point de vue, il convient d'indiquer à nouveau que le pouvoir discrétionnaire de l'administration consiste en la faculté d'apprécier l'opportunité qu'il peut y avoir à prendre ou à ne pas prendre une décision exécutoire, ou à ne pas la prendre immediatement, même lorsqu'elle est prescrite par la loi".


Com essas ligeiras considerações, conheço do recurso para negar-lhe provimento.


É como voto.


EXTRATO DA MINUTA


REsp n. 63.128-9 GO (95.0015132-4) Relator: Exmo. Sr. Ministro Adhemar Maciel. Recorrente: Ministério Público do Estado de Goiás. Recorrido: Estado de Goiás. Advogados: Drs. Maria José Perillo Fleury e outros e Getúlio Vargas de Castro e outros.


Decisão: A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Exmo. Sr. Ministro Relator (em 11.03.96 6ª Turma).


Votaram os Exmos. Srs. Ministros William Patterson, Luiz Vicente Cernicchiaro, Anselmo Santiago e Vicente Leal. Presidiu o julgamento o Exmo. Sr. Ministro ADHEMAR MACIEL.