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Artigo 208, II
(JTJ Volume 186 Página 9)
AÇÃO CIVIL PÚBLICA Proteção de interesse individual de menor Propositura contra Secretarias de Estado Legitimidade para figurarem no pólo passivo da demanda Atuação do Poder Público que se faz por intermédio de seus órgãos Preliminar rejeitada.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA Obrigação de fazer Prestação de atendimento adequado a menor deficiente sem recursos Artigo 208, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente Respon- sabilidade do Poder Público Omissão caracterizada Recurso não provido.
Se o Estado não pode proporcionar tratamento adequado a todos os menores deficientes, deve promover este tratamento por outros meios, às suas expensas. Jamais utilizar a falta de estrutura como justificativa para sua omissão.
Apelação Cível n. 22.786-0. ACÓRDÃO
Ementa oficial: Ação Civil Pública Menor deficiente físico Carente Legitimidade das Secretarias de Estado para figurarem no pólo passivo Responsabilidade do Poder Público, representado pelo Estado Omissão caracterizada Multa que deve ser fixada em valor elevado, a fim de compelir a execução do julgado e desencorajar o descumprimento do dever de ministrar o tratamento adequado ao menor Honorários do Perito fixados com moderação.
Recurso desprovido, repelida a matéria preliminar. ACORDAM, em Sessão da Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, rejeitar a matéria preliminar e negar provimento ao recurso, na conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte integrante deste julgado.
O julgamento teve a participação dos Senhores Desembargadores Dirceu de Mello (Presidente) e Lair Loureiro, com votos vencedores.
São Paulo, 26 de setembro de 1996. NIGRO CONCEIÇÃO, Relator. VOTO
1. O Doutor Promotor de Justiça da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de ... ajuizou ação civil pública, com preceito cominatório de obrigação de fazer para proteção do interesse individual do menor A. P., contra a Fazenda do Estado de São Paulo e os Secretários de Estado do Trabalho e Promoção Social, dos Negócios da Saúde e do Menor, com fundamento nos artigos 203, inciso IV; 208, inciso III; 227, § 1º, inciso II, da Constituição da República; artigo 279, caput, da Constituição do Estado de São Paulo; artigos 4º, parágrafo único, b; 7º, caput; 11, § 1º, e 208, inciso II, da Lei Federal n. 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Segundo consta dos autos, mediante procedimento verificatório, ficou apurado que A. conta com deficiência grave, provavelmente causada por traumatismo craniano, o que o torna totalmente dependente em suas atividades diárias. Apesar de inúmeras gestões e embora legalmente obrigado a oferecer tratamento adequado, em virtude da condição de carência de sua genitora, o Poder Público omite-se em prestá-lo.
Concedida a medida liminar, com fundamento no que dispõe o artigo 213, § 1º, do Estatuto, para a imediata internação do menor em estabelecimento adequado, foi fixada multa para o caso de descumprimento.
Concretizada as citações, somente a Fazenda do Estado ofereceu contestação.
Após regular instrução, foi proferida a respeitável sentença, que rejeitou a preliminar de ilegitimidade de parte, julgou procedente a ação e condenou os requeridos a oferecerem o tratamento adequado ao menor A. P., até que ele atinja a idade de 18 (dezoito) anos, fixando multa para o caso de descumprimento.
Inconformada, a Fazenda do Estado interpôs apelação, argüindo, em preliminar, a ilegitimidade de parte dos Secretários de Estado do Trabalho e Promoção Social, Negócios da Saúde e do Menor. No mérito, entende que não houve qualquer omissão por parte do Poder Público quanto aos cuidados e atendimento ao menor A., visto que o mesmo se encontrava cadastrado, no aguardo de uma vaga. Insurgiu-se, também, contra a multa fixada e os honorários fixados para o Perito Judicial.
Processado o recurso, com a manifestação do Doutor Promotor de Justiça, a respeitável decisão foi integralmente mantida.
O douto Procurador de Justiça opinou pelo desprovimento do apelo.
2. O Estatuto da Criança e do Adolescente deixa evidenciado que cabe "ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde", entre outros, à criança e ao adolescente (artigo 4º).
Por outro lado, o artigo 216 do Estatuto da Criança e do Adolescente, complementando esta disposição, determina a remessa de peças à autoridade competente, para apuração da responsa- bilidade civil e administrativa do agente a que se atribua a ação ou omissão, sempre que a sentença impuser uma condenação ao Poder Público.
Mas, a atuação do Poder Público, na realidade, se faz por intermédio de seus órgãos, os quais "têm ampla autonomia administrativa, financeira e técnica, caracterizando-se como órgãos diretivos com funções precípuas de planejamento, supervisão, coordenação e controle das atividades que constituem sua área de competência", como observa HELY LOPES MEIRELLES ("Direito Administrativo Brasileiro", pág. 67, 20ª ed., Malheiros Edito- res, São Paulo, 3ª tir., 1994).
Esta circunstância, assim, deixa evidenciado que estes órgãos, embora sejam despersonalizados, têm relações funcionais entre si e com terceiros, das quais resultam efeitos jurídicos internos e externos. Assim, "a despeito de não terem personalidade jurídica, os órgãos podem ter prerrogativas funcionais próprias que, quando infringidas por outro órgão, admitem defesa até mesmo por mandado de segurança" (cf. ob. cit., págs. 64-65).
Aliás, o saudoso mestre, em nota de rodapé, ressalta que "essa capacidade processual, entretanto, só a tem os órgãos independentes e os autônomos" (ob. e loc. cits.), ou seja, exatamente as Secretarias de Estado, por estarem incluídas entre estes últimos (pág. 67).
Por outro lado, determinando o artigo 216 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em caso de acolhimento da demanda contra o Poder Público, a apuração da responsabilidade civil e administrativa do agente, mais se evidencia esta legitimidade.
Rejeita-se, pois, a preliminar suscitada.
3. No mérito, a sentença não merece qualquer reparo.
O menor A. P. necessita, comprovadamente, de tratamento adequado, a ser ministrado pelo Poder Público, diante da condição de carente de sua genitora. Este dever para com os menores portadores de deficiência física foi expressamente assumido pelo Estado na peça recursal.
No caso, portanto, o Estado não questiona este dever, mas a omissão, que lhe é imputada em seu cumprimento.
Fundamenta a sua pretensão no fato de que o menor estava cadastrado, aguardando vaga para internação, não sendo possível a desinternação de um outro menor somente para ser substituído por A. A argumentação expendida pelo Estado demonstra satisfatoriamente sua omissão. Conforme bem acentua o digno Magistrado em sua respeitável sentença, "fila de espera não é tratamento adequado" (fls. 267).
A criança e o adolescente deficientes têm direito de receber atendimento educacional especializado e não o de ingressar em fila de espera para este atendimento (artigo 208, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente) futuramente. Se o Estado não pode proporcionar tratamento adequado a todos os menores deficientes, deve promover este tratamento por outros meios, às suas expensas. Jamais utilizar a falta de estrutura como justificativa para sua omissão.
Anote-se que A. não necessita de um tratamento qualquer, mas de tratamento adequado, visto que é portador de deficiência física e não mental. Até mesmo a Senhora Celeste de Boni, psicóloga arrolada como testemunha pelo Estado, reconheceu que A. não estava colocado em estabelecimento adequado para seu tratamento (fls. 226), tendo sido removido da "Casa de Davi" para a obra social "O Pequeno Cotolengo", onde "vem recebendo o tratamento adequado à sua patologia, bem como vem se submetendo a cirurgias que visam melhorar seus movimentos" (fls. 240).
Não há, portanto, como amparar a pretensão da apelante, visto que foi somente com a intervenção judicial que A. passou a ter seus direitos atendidos e respeitados pelo Poder Público.
Por outro lado, o fato de ter sido internado por força da liminar não torna a ação sem objeto, nem determina a extinção do processo, pois a simples internação não implica a concessão de um tratamento adequado às necessidades do menor. 4. Também não merece atendimento a pretensão de redução da pena pecuniária fixada para o caso de descumprimento da determinação judicial.
Na realidade, esta pena, se cumprida a obrigação primeira, consistente no atendimento do menor, jamais será objeto de execução.
Por esta razão, como bem destaca o Doutor Promotor de Justiça, a multa deve ser suficientemente alta para inibir, ou desencorajar o Estado de deixar de cumprir o mandamento judicial. "Fosse ela fixada em menos, haveria o risco de deixar a criança deficiente entregue ao critério do custo-benefício: quando o valor da multa pelo descumprimento for inferior a uma diária em obra adequada ao tratamento da deficiência, o Estado estará tentado a descumprir o mandado do Juízo" (fls. 284/287).
5. Finalmente, em relação aos honorários estabelecidos para pagamento dos trabalhos do Perito Judicial, os mesmos devem prevalecer, eis que fixados, segundo convicção do Magistrado, le- vando em conta o trabalho desenvolvido e com fundamento no valor médio de mercado à época, não se mostrando, assim, desajustada ao trabalho executado.
Ante o exposto, repelida a matéria preliminar, nego provimento à apelação interposta pelo Estado de São Paulo.