Antes de tudo, o homem
"- Muito bem: façamos de conta que temos uma hora disponível para contar histórias, e essa história seja a educação de nossos heróis.
- Perfeitamente.
- Qual será, pois, essa educação? Haverá outra melhor do que a tradicional? Esta compreende, segundo creio, a ginástica para o corpo e a música para a alma.
- Assim é."
Em A República, Platão fala por intermédio de Sócrates a respeito do tipo de educação pela qual os guardiões da sua utópica cidade deveriam passar. Era a Paideia, o ideal da educação grega que unia a ginástica à música (esta concebida como cultura espiritual).
A civilização grega marca o início de um novo ciclo na História com o nascimento de um novo mundo civilizado, agora o ocidental. É o descobrimento do valor humano, da sua individualidade e o início autêntico da história da Educação Física. A filosofia pedagógica que determinou os caminhos a serem percorridos pela educação grega tem o grande mérito de não divorciar a Educação Física da intelectual e da espiritual. Postulava, dessa forma, o mais significativo de todos os princípios humanistas, considerando que o homem é somente humano enquanto completo. Apesar de não ter o mesmo peso em todo o decorrer da sua história, as atividades físicas sempre puderam ser consideradas como elemento característico na escalada cultural do povo helênico, em qualquer dos seus momentos.
O primeiro desses momentos foi consignado pelos poemas de Homero (Ilíada e Odisséia). A educação desta fase (1200/800 a.C), embora não possuísse uma organização institucionalizada, presumia o ideal da sabedoria e da ação; aquela era representada por Ulisses, esta por Aquiles. A origem dos famosos Jogos Gregos - entre eles, os Olímpicos - está situada neste período e materializada nos "jogos fúnebres''. Entre estes destacam-se os que foram mandados celebrar por Aquiles em homenagem a seu amigo Pátroclo, morto por Heitor. Estes Jogos constaram de oito provas: corrida de carros, pugilato, luta, corrida a pé, combate armado, arremesso de bola de ferro, arco e flecha e arremesso de lança, demonstrando o ecletismo a que estavam submetidos os atletas-heróis nesse período.
A par dos exercícios que levassem a um bom desempenho atlético da aristocracia guerreira, grande privilegiada dessa época, aprendiam também as artes musicais e a retórica. Em se tratando de tempos heróicos, a educação era marcadamente guerreira. Tinha como traço essencial o mais alto ideal cavalheiresco (aretê) e o desejo de ser sempre o melhor (agonística), que vieram a caracterizar o povo grego.
O momento que se segue ao homérico é o chamado histórico (800/500 a.C), com a formação das cidades-estados. Dentre estas, Esparta e Atenas, representando o jogo de antagonismos ideológicos fadado a definir a evolução político histórica da Grécia Antiga.
Esparta, a cidade mais desenvolvida neste período, representa uma espécie de anti-humanismo grego. Os seus ideais totalitários levavam os cidadãos a um devotamento ao Estado e a uma subordinação absoluta à vontade dos superiores. A educação espartana pode ser analisada como um prolongamento da que existiu na época homérica. Perpetuava a formação cavalheiresca, militar e aristocrática, com um sensível desprezo pelo aspecto cultural, este tomado no seu sentido mais amplo. Estado guerreiro - todos deviam ser soldados - alimentava uma política de eugenismo que outorgava a uma comissão de anciãos o direito de condenar os nascidos raquíticos e disformes. Suas mulheres eram formadas robustas, enrijecidas moral e emocionalmente, prontas a cumprirem o seu papel de reproduzir espécimes perfeitos em nome do melhoramento da raça.
Nessa época surgem os grandes Jogos Gregos, dos quais participava toda a comunidade helênica: Píticos, Nemeus, ístmicos e, especialmente, os Olímpicos, criados em 776 a.C, em homenagem a Zeus. Estes jogos eram festas populares e religiosas, que envolviam, além de competições atléticas, provas literárias e artísticas. Os gregos possuíam cidades que eram estados independentes. Somente três situações marcavam um espírito verdadeiramente nacional: a iminência de um perigo externo, a religião e estas formidáveis festas esportivas. Por ocasião da época da realização destas últimas, tudo parava - inclusive suas lutas internas - em nome da honra maior da participação esportiva. O estilo de educação adotado em Esparta levava os seus atletas a vencerem a maior parte das provas de que participavam, pelo menos nos primeiros séculos de sua história. Assim, de 720 a 576 a.C, dos oitenta e um vencedores olímpicos de que se tem registro, quarenta e seis são espartanos. Na prova de corrida de velocidade, dos trinta e seis campeões conhecidos, vinte e um têm a mesma origem.
A história da Educação Física em Atenas, neste período de formação histórica, é bastante significativa. Podemos constatar o lugar peculiar que a ginástica e o atletismo ocupavam, tal qual em Esparta. A educação ateniense não tinha, porém, o caráter eminentemente militar que caracterizou a vida espartana. Os atenienses, descendentes dos jônios, povos amantes da cultura, não tinham o espírito guerreiro que os seus irmãos espartanos herdaram de antepassados dórios. Por estas raízes, a prática esportiva em Atenas subsistirá como um meio de formação do homem total, não se prestando apenas como preparação para a guerra. É de Sólon, legislador ateniense do começo do século VI a.C, o conselho: "As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler".
O modelo ateniense vem servir de paradigma para todo o mundo grego, à exceção óbvia de Esparta. Os seus locais para a prática esportiva, comparáveis aos de hoje, serviam não apenas à Educação Física como também para a formação intelectual do povo, salvo os escravos. Os ginásios, palestras e estádios possuíam grandes acomodações para o público, o que denota o interesse popular despertado pelo esporte. Um corpo docente, organizado e hierarquizado, conduzia administrativa e tecnicamente as atividades dos praticantes. O ginasiarca era a figura mais importante, sendo uma espécie de reitor da Educação Física e, quase sempre, da educação intelectual. Eleito pela comunidade, ele dirigia alguns dos ginásios e, em alguns lugares, todos os ginásios da cidade. O pedótriba corresponde ao que hoje chamamos de professor de Educação Física e estava equiparado em cultura e prestígio ao médico. Era também o responsável pela formação do caráter dos jovens efebos.
O período clássico ou humanista (500/338 a.C.) é o terceiro momento da história grega e marca o aparecimento dos primeiros grandes filósofos do mundo ocidental. Com a Filosofia, nasce também a Pedagogia, entendida de um modo mais sistemático e racional. A partir desse período, a Educação Física não ostenta o mesmo realce dos momentos que o antecederam, mas ainda aqui continua a merecer um destaque no plano
educacional grego. Aristóteles também valorizava o papel da ginástica, dando-lhe um cunho científico, quando diz que "a ciência da ginástica deve investigar quais exercícios são mais úteis ao corpo, segundo a constituição física de cada um".
Os exercícios físicos praticados pelos gregos tinham um caráter natural. Os seus esportes eram basicamente fundamentados no atletismo (correr, saltar e lançar) e realizados em total estado de nudez (ginástica significa a "arte de desenvolver o corpo nu"). Isto tudo sem o descuido dos aspectos fisiológicos que as atividades merecem e, principalmente, o cuidado estético que distinguia o homem grego. A concepção de educação era baseada na comunhão do corpo e do espírito, o que a tornava a mais humanista de todas.
As tradições helênica e romana em confronto.
Decadentes ao final do século V, em função de cisões e lutas internas que os enfraqueceram, os gregos deixaram-se dominar, inicialmente pelos macedônios (338 a.C.) e, posteriormente, pelos romanos (146 a.C). Este interregno, que representa o último capítulo da história da Grécia Antiga, é chamado de helenístico. Marca a influência do helenismo em todo o mundo conhecido. Universalizando-se, a educação dessa época valoriza cada vez mais o intelectual, com um crescente desinteresse do físico e do estético. O
declínio da civilização grega fez-se refletir em todos os setores da sua cultura. A prática das atividades físicas vai perdendo todos os seus ideais humanistas que talvez tenham sido o mais belo exemplo já inscrito na história da Educação Física. Os atletas começaram a especializar-se prematuramente, contrariando os objetivos educativos, estéticos e de saúde que foram tão tenazmente perseguidos durante séculos. Surge a profissionalização e, com ela, a corrupção dos atletas e juizes, numa evidente traição aos princípios que haviam forjado a grandeza da civilização helênica.